Apresentação:
Alimentos ultraprocessados (UP) são formulações industriais contendo muitos ingredientes, principalmente, aditivos químicos, excesso de sal e açúcar e uma pequena proporção de alimentos in natura (i.e., biscoitos doces e salgados, sucos em pó, refrigerantes, temperos prontos, embutidos e salgadinhos de pacote). Por sua composição, são nutricionalmente desbalanceados, tendem a ser consumidos em excesso e a tomar espaço da alimentação habitual ao substituir alimentos in natura ou minimamente processados. Diversos estudos associam o elevado consumo de UP ao maior risco de desenvolvimento de doenças crônicas não-transmissíveis. Além disso, sua forma de produção, distribuição, comercialização e consumo afetam de modo desfavorável a cultura, a vida social e o meio ambiente. A literatura indica que supermercados apresentam maior disponibilidade de UP, principalmente em regiões de maior vulnerabilidade (i.e., menor renda, maior número de moradores por residência e maior proporção de pardos e negros). Adultos brasileiros percebem seus bairros como favoráveis ao consumo de UP e apontam que apreciar o sabor destes alimentos, as preferências dos filhos, a conveniência e o custo são facilitadores para seu consumo. Além disso, uma análise do consumo de UP mostrou aumento nos últimos anos concomitante com a redução da aquisição de alimentos in natura ou minimamente processados no país, principalmente Sul e Sudeste, destacando-se o consumo de margarina, biscoitos salgados e salgadinhos, pães, biscoitos doces, frios e embutidos, chocolate, sorvete e sobremesas industrializadas, refrigerantes e cachorro-quente, hambúrgueres e sanduíches. No Brasil, há também interação entre o consumo de UP e as variáveis sociodemográficas, a exemplo do sexo, raça, escolaridade, renda e região. O preço dos UP no Brasil tem reduzido sucessiva e expressivamente, sobretudo a partir dos anos 2000, apresentando tendência de ter menores preços do que alimentos saudáveis já em 2026. Cabe destacar que, para indivíduos com baixa renda, o custo mensal com a alimentação tende a corresponder cerca de 20% da renda da família, enquanto indivíduos com alta renda o custo mensal com a alimentação corresponde em menos de 10% da renda familiar. Portanto, o objetivo do presente estudo foi determinar a frequência absoluta e relativa de adultos brasileiros com alto risco de desenvolver Diabetes Mellitus do tipo 2 (DM2) que referiram que, os alimentos acabam antes do mês terminar, isto é, antes que tivessem dinheiro para comprar mais e comparar o consumo alimentar entre aqueles que referem ou não a escassez de alimentos somada à finitude do recurso financeiro. Por último, modelos multivariados foram desenvolvidos para identificar se houve influência da escassez de alimentos somada à finitude do recurso financeiro no consumo de UP.
Desenvolvimento do trabalho: O objetivo do ensaio clínico multicêntrico controlado e randomizado PROVEN-DIA (ClinicalTrials NCT05689658) é avaliar a eficácia do Programa Brasileiro de Prevenção de Diabetes no nível de atividade física e consumo alimentar em 220 adultos com alto risco para DM2 (i.e., presença de sobrepeso, inatividade física, hipertensão, histórico familiar de DM2 e/ou diabetes gestacional, idade ? 40 anos e sexo masculino). A presente subanálise inclui dados de linha de base dos participantes do PROVEN-DIA. Foram coletados dados relativos à acessibilidade aos alimentos (EPIFloripa) e consumo alimentar (dois recordatórios de 24h para determinar os escores de adesão à alimentação/DICA-Br). A alimentação cardioprotetora leva em consideração quatro densidades para dividir os alimentos: densidade energética (?1,11kcal/g), densidade de colesterol (?0,04mg/g), densidade de gordura saturada (?0,01g/g) e densidade de sódio (?2,01mg/g). Conforme as densidades, os alimentos e/ou preparações são classificados em cores, sendo verde (densidades ? pontos de corte), que devem ser consumidos em maior quantidade; amarelo (uma ou duas densidades > pontos de corte), orientados a consumir em quantidade moderada; azul (3 ou mais densidades > pontos de corte), orientados a consumir em menor quantidade; e o vermelho (UP), que independe da categorização das densidades, considerando apenas a definição do Guia Alimentar para a População Brasileira e contraindica o consumo de UP. Haja visto que cada cor totaliza um escore de 0 a 10, o escore total pode variar de 0 a 40, à medida que quanto maior for o escore, melhor a qualidade da alimentação. Adicionalmente, foram obtidos dados sociodemográficos (idade, sexo, macrorregiões brasileiras, raça, escolaridade e nível socioeconômico) e antropométricos (peso corporal, altura e IMC). A priori, os dados foram analisados descritivamente e apresentados em média (desvio padrão), frequência (absoluta e relativa) e mediana (intervalo interquartil). Em seguida, a amostra foi dividida em dois grupos segundo a resposta à pergunta “Nos últimos três meses, os alimentos de sua residência acabaram antes que você tivesse dinheiro para comprar mais?” (Não=0, Sim=1). A comparação entre os grupos foi realizada por meio do teste t de Student, qui-quadrado ou Mann-Whitney segundo a normalidade dos dados. Embora o consumo alimentar tenha sido caracterizado por meio dos escores de adesão à alimentação cardioprotetora, somente o escore vermelho foi incluído nas análises multivariadas por se tratar de uma variável contínua e discreta que reflete o consumo de UP. Por último, as associações foram obtidas por meio de análises bivariadas e multivariadas, tendo o escore vermelho da alimentação cardioprotetora (consumo de UP) como desfecho, a escassez de alimentos somada à finitude do recurso financeiro como preditor e o ajuste dos modelos pelas demais variáveis (idade, sexo, IMC, escolaridade, estado civil, raça, nível socioeconômico e macrorregião). No caso das macrorregiões, as variáveis foram tratadas como dummy. Em contrapartida, escolaridade, estado civil, raça e nível socioeconômico foram dicotomizadas. A significância foi fixada em 5%.
Resultados: Dentre os 220 participantes, 54 (24,5%) referiram que os alimentos em casa acabaram antes do mês, isto é, que tivessem mais dinheiro para comprar outros. Estes sujeitos apresentaram menor média de idade (46,8±8,7 vs. 49,4±9,7 anos; p=0,043), menor escolaridade (p=0,004) e renda (p=0,003). No que se refere à adesão a alimentação cardioprotetora, apenas o escore azul diferiu significativamente entre os grupos (5.0[0.5-7.5] vs. 5.5[2.8-10], indicando que os indivíduos que não reportaram a escassez de alimentos somada à finitude do recurso financeiro apresentam pior adesão ao grupo azul, comparado com aqueles que reportaram; p=0,018). Ao todo, foram elaborados quatro modelos de regressão do tipo enterwise. Quando analisados os modelos bivariados e multivariados para identificar se houve influência da escassez de alimentos somada à finitude do recurso financeiro no consumo de UP, somente a idade foi preditora em todos os modelos desenvolvidos (p<0,05) ajustado para todas as variáveis independentes de interesse, ou seja, a escassez de alimentos somada à finitude do recurso financeiro não foi determinante para o escore vermelho (p=0,598). Em contrapartida, o nível socioeconômico associou-se negativamente com o escore vermelho, indicando que, quanto maior o nível socioeconômico, maior consumo de UP (coeficiente: -1.797; R²=0,136; p=0,002), apesar de baixo coeficiente de determinação.
Considerações finais:
Um quarto da amostra refere que os alimentos e o dinheiro para sua compra acabaram antes do final do mês, sendo sobretudo aqueles mais jovens e com menor renda e escolaridade. Quando comparados os grupos, não há diferença em relação à adesão a alimentação cardioprotetora, exceto para o consumo de carnes em geral (grupo azul). Além disso, a escassez de alimentos somada à finitude do recurso financeiro não implica em consumo aumentado de UP. Reforçamos que o desenho do estudo e o tamanho amostral não permitem inferir causalidade, sendo necessários mais estudos para esclarecer essa associação.