O presente trabalho parte da experiência dos pesquisadores na atuação junto à Associação Ciranda da Cultura, uma iniciativa popular voltada para o fazer artístico e cultural em um bairro periférico da cidade de Londrina, no contexto do curso de extensão PROA – A Psicologia na Região Oeste A: Tecendo a rede no território, voltado para os estudantes do 1º ano da graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Londrina. Como parte das atividades do curso são desenvolvidas oficinas (de contação de histórias, música, dança, artesanato e brincadeira) por parte dos estudantes, tomando como ponto de partida as demandas e necessidades da própria comunidade e funcionando com a diversidade como princípio; o público participante das oficinas é composto principalmente por crianças ? são desenvolvidas, também, atividades como zumba, fisioterapia e atividade física, voltadas para o público adulto, promovidas por outros profissionais que também atuam no Ciranda. Dado o caráter contínuo das atividades, trata-se de uma ação que envolve a criação de vínculos. E para além da atuação nas oficinas, os estudantes fornecem atenção às questões apresentadas pelas crianças, incluindo seus receios, preocupações, problemáticas; esse tipo de ação é possível graças à presença de vários oficineiros nos diferentes momentos, sendo possível dedicar uma atenção de forma individualizada caso isso seja necessário. Nesse contexto, ganha relevância a figura do balanço, que exerce a função de um espaço de escuta e acolhimento, marcado pelo livre fluir dos pensamentos, um espaço em que são expressados os sentimentos e dilemas com significativa abertura. O balanço ? para além de um espaço de livre expressão da infância, do brincar, do ser criança ? funciona também como um divã, e não há separação entre isso e aquilo, eis o porquê do termo “balanço-divã”.
Para a elaboração inicial dessa ideia, foram utilizadas como ponto de partida a psicologia comunitária – proposta por Maritza Montero, que apresenta como método de estudo e pesquisa a IAP (investigación-acción participativa) ou, em livre tradução, pesquisa-ação participante, a qual tem a produção do conhecimento na comunidade, para a comunidade e com a comunidade, sendo o pesquisador também um integrante do meio (em) que pesquisa e não um mero observador dos fenômenos sociais – e a psicologia do cotidiano de Peter Kevin Spink – ao reconhecer que a atuação está localizada, centrada na cotidianidade, que se trabalha com o não planejado, os fragmentos do dia-a-dia, na busca por solucionar os problemas e questões que surgem em conjunto e de forma horizontal com os demais integrantes dos lugares e micro-lugares –, as quais permitem a atividade dos pesquisadores como pesquisadores-participantes em sua atuação como oficineiros no Ciranda da Cultura.
Além disso, tomam-se para análise as formulações freudianas, no campo da psicanálise, acerca do conceito de atenção flutuante ou escuta flutuante, a qual é entendida como o ato de escutar sem a preocupação de notar algo, ou então o não querer perceber algo de especial na fala do analisando (no caso mais específico da clínica psicanalítica), caminhando em conjunto e complementando a associação livre – a postura do analisando de falar aquilo que lhe vem à mente, sem fazer distinção ou estabelecer critérios de importância, dando liberdade para a expressão do inconsciente –, permitindo assim a comunicação entre os inconscientes. O divã se caracteriza, também na teoria psicanalítica, como um local onde o analista vê o analisando mas não é visto, demonstrando a entrega ao processo analítico, e dessa maneira as expressões de quem escuta não influenciam o que o analisando diz, permitindo que fale com liberdade o que vem à mente. E é justamente daí que vem o termo balanço-divã: a criança não enxerga quem a está balançando, nem as reações que a pessoa expressa diante do que é dito, permitindo a espontaneidade e a entrega ao diálogo estabelecido.
Por fim, constitui fundamento da pesquisa a noção de cartografia proposta por Gilles Deleuze e Félix Guattari, ao compreender que o objeto que se pesquisa não é estático, mas está em constante mudança e transformação, e o lidar com esse objeto é construído no próprio contato com o objeto ? entendendo que a realidade é composta por linhas duras, flexíveis e de fuga, compondo o que se pode chamar de rede; mediante a isso é constituído o processo de subjetivação ?; é uma intervenção que adquire forma de criação e resistência a partir da experiência vivida.
Quando colocadas nesse espaço, as crianças ? que muitas das vezes buscam essa escuta, e vão de encontro aos oficineiros, os chamando para para uma conversa mais próxima; além dos momentos nos quais algum dos estudantes identifica que uma criança talvez demande essa atenção ? usam da fala para expressar tudo aquilo que vem guardando, confiam na pessoa escolhida para que essa seja a ouvinte de suas histórias. É um momento de troca e reciprocidade, o oficineiro está lá não para apresentar uma solução ou identificar um possível problema, mas sim simplesmente para estar para o outro, independentemente do que é trazido ? seja uma história ou algo que a angustia, incomoda ? cabe a quem está ali no momento escutar e principalmente acolher. É a partir dessa, e de outras muitas formas, que demonstram o carinho que tem por cada criança, consequentemente criando e aprofundando o vínculo oficineiros-crianças; por sua vez, à criança que recorre a essa escuta é permitido entrar em contato consigo e, muitas vezes, com questões que não lhes são permitidas acessar em outras situações.
A cartografia, nesse sentido, contribui com a pesquisa-ação participante na leitura dos afetos que circulam no processo comunitário. Ao entrar em contato com os afetos que são apresentados, constrói-se continuamente uma cartografia dos afetos. Entre afetos alegres e tristes, o que aumenta e o que diminui a potência de agir; constituindo nessa variância o próprio ato de existir. Em um elaborar, experimentar e (tentar) descobrir a nossa potência ? e, principalmente, a das crianças ? de afetar e ser afetado; na busca por desdobrar nossa possibilidade de sermos causa direta das nossas ações. Entendendo também as linhas duras, flexíveis e de fuga que compõem cada uma das subjetividades com as quais temos contato.
A proximidade vivida no ciranda é regada pelo processo de saber o outro e pela arte de transformar o estranhamento do que é familiar mas não necessariamente conhecido, em afeto, e é nesse movimento convectivo que nasce a possibilidade de um ambiente acolhedor e destaca-se a potência da alegria, quando as oficinas se tornam pequenos momentos de carnaval ? como o feriado que transforma o ordinário de um povo sofrido em festa ? ao longo das semanas.
Sendo assim, propõe-se o balanço-divã enquanto uma ferramenta psicossocial comunitária de inspiração psicanalítica ? apontando para a necessária integralidade, articulação da psicologia, com a psicologia clínica e a psicologia social trazendo contribuições mútuas ?, constituindo uma alternativa que ultrapassa os muros da clínica. A partir desse esboço, pretende-se construir novas pesquisas, rumo à compreensão e ampliação desse conceito (que é também uma técnica). Dessa forma, tendo como alvo a efetivação da promoção de saúde como aumento da potência da alegria, do vínculo e da elaboração da dor.