Cuidados psicossociais a partir da comunidade: o caso Tupinambá Serra do Padeiro/BA

  • Author
  • LEONARDO JOSÉ DE ALENCAR MENDES
  • Abstract
  • A Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença possui cerca de quarenta e sete mil hectares, estendendo-se do litoral às serras, abrangendo mais de 20 localidades indígenas. Situada entre os municípios de Buerarema, Ilhéus, São José da Vitória e Una, na região sul do estado da Bahia, a Serra do Padeiro é uma das comunidades da TI. O governo brasileiro reconheceu a identidade étnica Tupinambá em 2002. Os procedimentos de identificação e delimitação da TI se iniciaram em 2004. A homologação do território ao povo Tupinambá vem encontrando diversos obstáculos do Estado brasileiro e atualmente encontra-se estagnada.

    O andamento insatisfatório do processo demarcatório para os Tupinambá requereu iniciarem em 2004 o processo de retomada de terras, no qual áreas tradicionalmente ocupadas, sob posse de não índios, são recuperadas a partir da ação direta dos Tupinambás. Esse processo fomentou reações continuadas dos proprietários rurais, agentes públicos e empresariado local. Assassinatos; monitoramento das locomoções de lideranças; prisões; torturas; emboscadas; difamações midiáticas; racismo étnico; são algumas ações realizadas. São os Tupinambá que têm garantido, por ação direta, a posse de boa parte do território. Conquistá-lo demanda da comunidade modos de organização, aprimoramento de estratégias de luta e sobrevivência, além de cuidar dos efeitos dos conflitos e viver bem.

    O processo da invasão e permanência colonialista é assinalado como elemento básico para grande parte do sofrimento mental e de adoecimentos, tendo em vista as dificuldades incidentes para o “ethos indígena”. Até porque estar enredado em sofrimento mental é estar com problemas relacionados a internalidades e às coisas dos brancos. Em sua maioria, as práticas de saúde em contextos indígenas, incluindo as de saúde mental, ainda são perpassadas por compreensões e práticas focalizadas no indivíduo e biologizantes, favorecendo a predominância de processos medicalizantes da saúde nas populações indígenas.

    Inscrita nas pesquisas qualitativas em saúde, com aspectos de pesquisa-intervenção, traz a seguinte problemática: como as ações e estratégias de organização comunitária colaboram na saúde mental da população Tupinambá da Serra do Padeiro? Tem como objetivo geral compreender como a organização comunitária produz resultados na saúde mental da população citada. A investigação é feita a partir do estudo de caso da Aldeia Tupinambá Serra do Padeiro, no sul da Bahia.

    A produção científica brasileira a respeito da saúde mental em contextos indígenas vem sendo apresentada em poucas revisões sistemáticas como possuindo uma escassez não reduzida ao quantitativo de produções, mas à abordagem teórica, da necessidade da interdisciplinaridade e do diálogo interétnico. À necessidade da interdisciplinaridade, esses estudos observam a pouca reflexão teórica e epistemológica sobre o uso das categorias saúde mental (e correlatos) e indígena, agregando a necessidade de se repensar o uso destes termos correntes, geralmente utilizados de modo reificado. Todavia, nos últimos anos o tema tem apresentado uma crescente de trabalhos, condizente com a ascendente relevância do tema, abarcando diferentes perspectivas teóricas e metodológicas, com análises que em sua maioria subsidiam-se a partir da política pública da saúde indígena e sua assistência. Poucas se debruçam sobre etnias situadas no Nordeste brasileiro, não se encontrando registros sobre a questão em comunidades Tupinambá, lacuna esta que o trabalho busca amainar.

    A presente cartografia utiliza as seguintes técnicas: observação participante, entrevistas semiestruturadas, diário de campo e estudos bibliográficos. O período de campo foi seguido de acompanhamento à distância de processos da comunidade a partir de contatos e notícias. As observações ocorreram em espaços comunitários ordinários, festejos realizados, trabalhos coletivos e reunião mensal da associação comunitária.

    A pesquisa analisa também: os fatores produtores do sofrimento psicossocial no contexto estudado; as práticas de autoatenção comunitárias para enfrentamento dos problemas psicossociais e investigar seus efeitos na resolução de casos; as articulações entre os saberes e práticas indígenas e não indígenas nas práticas de cuidado estudadas. O modo de organização da comunidade se inscreve como elemento chave para prevenção, cuidado e recuperação da saúde mental, evitando agravos, promovendo a reabilitação e inserção social de membros acometidos de tais sofrimentos. A espiritualidade, o trabalho, a cultura, a educação e a coletividade, assim como algumas idiossincrasias locais, são alguns dos aspectos centrais nesse arranjo comunitário de produção (incluindo-se prevenção, proteção e promoção) da saúde mental de modo coletivo.

    No caso da comunidade em questão, a recuperação territorial via as retomadas de terras e sua permanência ocorre de modo independente à não-demarcação territorial pelo Estado brasileiro. Assim, as práticas e a estratégias de organização, enfrentamento e cuidado promovidas pela comunidade, destacam-se enquanto força produtora de saúde em um contexto de ameaças, violências e possíveis traumas.

    A vida cultural na Serra do Padeiro tem lugar diferencial na sua organização. Animada geralmente pelo grupo jovem, pela escola e em eventos religiosos, festejos e rituais, além de renovar e fortalecer a ação dos encantados e os vínculos comunitários, ampliam e consolidam articulações políticas com atores e organizações externas. É mais um componente da diversidade de atuação do projeto comunitário.

    Um aspecto atual e relevante é a repercussão do Manto Tupinambá. Presente em diferentes esferas da produção do conhecimento e das artes, vem inserindo a Serra do Padeiro definitivamente no mapa da arte e da educação indígena. Isto agrega às suas boas práticas produtivas, de subsistência e de cuidados em espiritualidade. Mais que uma repercussão externa, o Manto Tupinambá demarca um território de fortalecimento interno da comunidade e suas lideranças.

    A comunidade é elemento ímpar no enfrentamento aos problemas psicossociais. Ferramenta problematizadora do cuidado, favorece arranjos de trabalho centrados na coletividade, nas interações entre si e com agentes externos, incluindo com a equipe de saúde. Caminho necessário para evitar e desconstruir modalidades tuteladoras e medicalizantes. A formação de redes de apoio solidárias e de modos de produção coletivos atuam na sustentação das políticas de saúde e educação, exercendo um controle social ativo. Tal organização articula continuamente diferentes esferas da vida, favorecendo a compreensão dos modos Tupinambá de lidar com o sofrimento biopsicossocial.

    Na Serra do Padeiro encontra-se experiências que questionam pilares da cultura da saúde, como: hierarquização entre serviços, profissionais e clientela; disputas de poder e desarticulação do controle social; preconceito e violências contra as diferenças; a individualização e a medicalização de questões sociais. Inserir a experiência da Serra do Padeiro no debate da atenção diferenciada qualifica também a luta antimanicomial. Ao tratar de práticas acima de tudo comunitárias, verificamos as potências da cultura e da sociabilidade para problematizar a Saúde Coletiva. Antes de se implantar verticalmente programas e modelos – como de costume –, é urgente constatar há muito o que se aprender com as nações indígenas, inclusive quando o assunto é coletividade, luta e saúde.