Apresentação:
A Unidade de Acolhimento (UA) é um dispositivo instituído por meio da Portaria nº 121, de 2012, configurando-se enquanto moradia transitória para cuidado e promoção de saúde voltados aos usuários de álcool e outras drogas, sendo vinculado a RAPS, mais especificamente aos CAPS-AD. Este trabalho tem por objetivo promover reflexões críticas sobre a lógica manicomial que ainda atravessa serviços substitutivos de saúde mental, que foram suscitadas a partir da visita técnica a Unidade de Acolhimento Adulto da cidade de Belém do Pará, feita como atividade da disciplina acadêmica Saúde Mental e Coletiva do curso de psicologia/UFPA.
Descrição da experiência:
A UA em questão localiza-se próxima à rodovia que liga Belém ao distrito de Icoaraci. Essa região é caracterizada pela formação de conjuntos habitacionais e condomínios fechados, sendo evidente a ausência de espaços de lazer e de empreendimentos do ramo terciário, como pequenos comércios e feiras, demonstrando um caráter de isolamento em torno da casa em que funciona a Unidade. Em relação à residência, percebemos que, apesar de ampla, estava com sinais significativos de descuido – vide o mato alto cobrindo o solo por completo e o abandono do ateliê de artes. É notória a dificuldade de chegar até o local devido à distância em relação aos pontos centrais da cidade, incluindo o CAPS-AD ao qual a UA é referenciada, além de que a viela de acesso à casa tem um grau considerável de risco à segurança, conforme relatado pelos usuários e profissionais. Ademais, não são desempenhadas quaisquer atividades recreativas, nesse cenário os usuários narraram passar os dias na UA assistindo televisão e acessando a internet pelos celulares, exercendo aquilo que a psicóloga do serviço define como ‘’o ócio nada criativo’’. A partir disso, levantamos a discussão acerca dos tipos de práticas realizadas nesses espaços e seu viés de aproximação-oposição da lógica manicomial.
Resultados:
Na década de 30, o antigo ‘’Asilo dos Alienados’’ passou por uma reestruturação e foi renomeado como Hospital Juliano Moreira, que se tornaria o maior manicômio do Pará. Seguindo os moldes de outros manicômios do Brasil, ele foi construído no ‘’marco da légua’’ que, na época, demarcava o limite de Belém. Completamente afastado da malha urbana e com os arredores murados, o tratamento destinado aos chamados loucos era feito com eletroconvulsoterapia, camisas de força e uso de medicamentos orais e injetáveis cuja função era a contenção dos pacientes, sem realizar práticas de cuidado efetivas. Esse tipo de funcionamento evidencia ações que objetivam unicamente o controle dos corpos, com a exclusão de estratégias de escuta e o rompimento do vínculo com as famílias dos pacientes e com o território. Quase cem anos depois, como conquista das lutas dos movimentos sociais no estado, sobretudo dos setores da saúde pública e assistência social, o hospício Juliano Moreira e estabelecimentos análogos foram desativados em favor da Rede de Assistência Psicossocial (RAPS), que articula diversos serviços de atendimento integralizado à saúde mental, baseado no cuidado territorializado, em liberdade, humanizado, com autonomia e respeito aos direitos humanos. Todavia, tais princípios estão em dissonância com a realidade de desfinanciamento que visa sucatear a rede e promover uma descredibilização dos serviços substitutivos aos manicômios, tomando parte em um projeto de mortes – físicas e subjetivas – desenvolvido por políticas neoliberais. Essas ações corroboram para que, ainda hoje, uma lógica manicomial permeie os equipamentos substitutivos, que correm o risco de sofrer processos de “manicomialização”. No caso desta UA, com práticas de cuidado fragmentadas, dificuldade de articulação com a rede e, como a psicóloga do serviço relatou, “uma estadia não terapêutica” para os usuários, que se encontram não só distantes de seu tratamento, mas de seus territórios e vínculos afetivos, em um local que, apesar do esforço da equipe, não é tido como prioridade para o investimento em políticas públicas e segue o modelo de isolamento e abandono daqueles vistos como indesejáveis. “Quem vai dar emprego para um mendigo?”, foi uma das falas ouvidas pela psicóloga do serviço por um usuário, isso traz à tona o olhar que os próprios usuários têm de sua situação, mesmo alocados em uma casa, com local para dormir, sentem-se “mendigos”, pois são preteridos diante da sociedade, esse é o sintoma de um serviço de acolhimento sem reabilitação. A liberdade e autonomia, como diretrizes da RAPS, deveriam dar conta de abarcar o cuidado integralizado em todos os aspectos da vida de seus usuários, mas essa não é a realidade percebida em grande parte de seus equipamentos. Apesar de todo o avanço na reforma psiquiátrica, a força contrária traz formas de controle cada vez mais sutis, com marcas invisíveis, mas que ainda buscam subjugar e hierarquizar seres humanos. Essa é a ratificação do que foi dito por Pelbart (1989), de que podem-se quebrar os muros dos manicômios, mas a cultura manicomial permanecerá em nossos manicômios mentais, e isso ultrapassa a ordem política, pois produzimos encerros subjetivos tão poderosos quanto.
Considerações finais:
Observamos a partir da visita à Unidade de Acolhimento, e dos diálogos que tivemos com os funcionários e usuários, que existem conflitos entre a proposta teórica desse serviço e sua realidade factual, cuja impressão marcante é a de funcionar como um depósito de gente, apartado do convívio com a comunidade e sem laço com a própria cidade. Embora grande parte das instituições asilares tenham sido desmanteladas, a manicomialidade persiste e se reatualiza – se não no formato de outros espaços físico com nomeação eufêmica à exemplo das comunidades terapêuticas – como ato, discurso e lógica mesmo nos serviços de saúde mental que, de saída, prezam pelo raciocínio reformista. Este trabalho corrobora que certamente não se pode prescindir da UA, tendo em vista que é um importante serviço de abrigo e proteção para pessoas em situação de vulnerabilidade social, sobretudo usuário de substâncias com vínculos familiares interrompidos e sem moradia, porém é necessário questionar e repensar as formas de cuidado oferecidas nos diversos pontos da RAPS a fim de que os resquícios de um passado opressor de institucionalização de sujeitos, o qual colocava amarras nos desejos e subjetividades, possam ser de fato erradicados. Ao que pese a carga de exaustão dos profissionais dessa rede por conta do histórico de negligência e desmonte promovido pelas autoridades, o cuidado territorializado, em liberdade e com protagonismo do usuário, bem como a manutenção dos dispositivos do SUS que o permitem tal como as UAs, são uma luta contínua e devem ter em seu horizonte a restituição daquilo que Sousa e Albim (2019) afirmam que os manicômios sempre tolheram: o direito à existência pública e à palavra.