Introdução: Dez anos após o lançamento do relatório que deu origem à agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável, qualquer progresso que esteja sendo feito para a mitigação, adaptação, redução de impacto e alerta precoce da mudança do clima está longe de ser universalmente aceito. Assim, no cenário contemporâneo, o deslocamento humano devido às mudanças climáticas emergiu como uma das principais preocupações globais. O aumento das temperaturas, eventos climáticos extremos e a degradação ambiental levam milhões de pessoas, em todo o mundo, a deixarem suas casas em busca de segurança e meios de subsistência. Segundo relatório da Organização Meteorológica Mundial, o Brasil registrou 12 eventos climáticos extremos em 2023, sendo nove deles considerados incomuns e dois sem precedentes. Soma-se a isso a má gestão de mecanismos e falta de planejamento relacionado à mudança do clima pelos governantes. No Rio Grande Do Sul, a intensificação dos processos de desenvolvimento predatório em relação à natureza, associados à falta de estratégias de adaptação em nível local, desenvolvimento de planos de gestão de recursos hídricos, políticas de zoneamento para áreas propensas a eventos climáticos extremos e promoção de práticas agrícolas sustentáveis pelo governo tornam os últimos eventos de emergência climática um fenômeno político. Dentro desse contexto, o número de pessoas refugiadas climáticas que enfrentam desafios específicos, incluindo acesso limitado a cuidados de saúde adequados, cresce exponencialmente na região. Portanto, relatar experiências dos cuidados em saúde realizados com esta população e refletir criticamente acerca do tema se torna extremamente relevante. Objetivo: Relatar uma experiência empírica e refletir criticamente sobre o processo de cuidado em saúde de grupos refugiados climáticos. Desenvolvimento: Relato de experiência realizada em maio de 2024, em uma cidade da região central do Rio Grande Do Sul (RS), que possui 497 municípios, dos quais 336 enfrentam estado de calamidade pública em decorrência das intensas chuvas que assolam a região. A experiência trata-se de uma ação voluntária de uma enfermeira, docente e pós-graduanda, no processo de cuidado em saúde de aproximadamente 20 famílias de refugiados climáticos. Para desenvolver o processo de cuidado, inicialmente um grupo de enfermeiros docentes foi contatada virtualmente, via Whatsapp, pela secretaria de saúde do município, com vistas a atuar de forma voluntária no suporte à saúde de pessoas que encontravam-se desabrigadas em detrimento das enchentes. Após aceite, foi organizada uma escala de trabalho, contendo turnos distintos para participação profissional no local definido pelo município para abrigar a população. As intervenções realizadas parpassaram por aconselhamento, encaminhamentos, administração de medicamentos e realização de pequenos curativos. A população de desabrigados refugiados no local era composta predominantemente por pessoas que anteriormente já encontravam-se em situação de vulnerabilidade social, como idosos de baixa renda, pessoas em situação de rua, mulheres-mães solo e negras. Foram cedidos pelo município materiais para coleta de dados subjetivos e objetivos dos refugiados, como caderno, caneta, maca, biombo, estetoscópio, termômetro e esfigmomanômetro. Ainda, equipamentos de proteção individual (luvas de procedimento, luvas plásticas estéreis, máscaras triplas descartáveis, toucas e caixa de descarte de materiais perfurocortantes) foram disponibilizados, também pela secretaria de saúde do município. A análise das informações dispostas no presente estudo será realizada de forma crítica e reflexiva. Este relato seguiu os preceitos éticos e, por se tratar de experiência empírica da própria autora, não necessitou de aprovação de comitê de ética em pesquisa. Resultados: O perfil de pessoas atendidas durante a ação voluntária foi diverso. Foram acolhidas pessoas com faixa etária distinta, entre dois meses e 70 anos. A população foi composta majoritariamente por mulheres, negras, mães, desempregadas e com alguma doença crônica pré-existente. Ao obter informações sobre as necessidades de cuidado em saúde desses grupos, foi preciso organizar ações específicas de cuidado para problemas de pele relacionados ao uso de roupas de cama e pessoais provenientes de doação e sem a higienização correta, leves desidratações, pequenos ferimentos e alta demanda de acolhimento e escuta qualificada. Essa escuta permitiu compreender que o sofrimento dos refugiados climáticos extrapola o físico, sustentando-se no campo socioemocional. A literatura aponta que viver em situação de vulnerabilidade social, enfrentar insegurança alimentar e perceber baixo nível de suporte social aumentam as chances do desenvolvimento de problemas de saúde e dificultam o acesso à cuidados necessários. Somado à isso, diversas foram as barreiras enfrentadas na promoção da saúde dos refugiados climáticos do local, pois apesar da possibilidade de identificação dos problemas existentes, como condições de vulnerabilidades física e emocional de uma pessoa, família ou da coletividade, não existiu suporte para realizar o desenvolvimento de um plano assistencial integral e contínuo. Ainda, apesar de grande colaboração voluntária no local, vivenciou-se uma grande lacuna na comunicação imediata e contínua com órgãos oficiais do município e estado. Ainda, ao observar necessidade de cuidados colaborativos com as demais profissões de saúde, verificou-se a falta de articulação da gestão municipal e estadual para situações de desastres climáticos, ficando a responsabilidade sobre os profissionais voluntários, de forma desorganizada. Também, a fragilidade emocional dos refugiados e a falta de uma proposta de suporte psicológico local dificultou o estabelecimento do vínculo necessário para abordar tems relevantes no momento. Apesar de constantes avisos a partir de pesquisas de campo e estudos teóricos, um levantamento da Confederação Nacional dos Municípios aponta que mais de duas mil prefeituras não tem um plano para lidar com desastres climáticos. Já o município em questão, quarenta e cinco dias antes do desastre climatológico, lançou um plano de contingência que aborda planos de atuação em diversas situações de calamidade, incluindo enxurradas, alagamentos e inundações, o qual não foi efetivamente implementado até o presente. Isso deve-se, além do despreparo da gestão na disseminação de alertas precoces e na coordenação de medidas de preparação em nível local, a eximição de responsabilidade pelo desmonte de legislações ambientais por parte dos membros do poder legislativo, executivo e judiciário em nível municipal, estadual e federal. Considerações Finais: A experiência vivida revela que o processo de cuidado em saúde de pessoas refugiadas climáticas é profundamente influenciado por fatores estruturais e históricos. No entanto, é importante reconhecer que essa abordagem não é isenta de responsabilidade profissional, e requer um compromisso contínuo com a justiça social e ambiental. Ainda, a vivência reitera que a escuta ativa e o acolhimento dessa população qualifica profissionais a desenvolver intervenções mais eficazes e politicamente informadas para melhorar o cuidado em saúde de pessoas refugiadas climáticas. Destaca-se, portanto, a necessidade de abordagens integradas que considerem não apenas os aspectos biomédicos do cuidado, mas também os determinantes sociais e ambientais da saúde. Além disso, enfatiza-se a importância da existência de políticas que abordem as causas subjacentes das mudanças climáticas e da migração forçada. Por fim, recomenda-se a criação de planos de evacuação e abrigo em caso de desastres, coordenação de equipes de resposta de emergência e a implementação de programas de reconstrução e recuperação de longo prazo.