Apresentação
Objetiva-se narrar a experiência relacionada a construção de uma horta comunitária em uma Unidade de Saúde da Família (USF) enquanto dispositivo de cuidado em saúde mental. A vivência se deu na relação com a Residência Multiprofissional em Saúde da Família e Comunidade, da Secretaria Municipal de Saúde da cidade de João Pessoa/PB, entre os anos de 2022 e 2024, em uma USF localizada em uma região em processo de urbanização recente e acelerado, tendo ainda marcas de um ambiente rural.
A USF apresentava uma grande demanda relacionada ao cuidado em saúde mental, sendo corriqueiramente a conduta medicamentosa a única via de tratamento adotada para cuidar das diversas situações de sofrimento psíquico apresentadas pela comunidade. Além disso, via-se também o encaminhamento para profissionais de psicologia em serviços especializados, especialmente as policlínicas, que comumente não se efetivavam visto a grande demanda apresentada.
Dentro desse contexto, a criação de uma horta comunitária envolvendo profissionais residentes, agentes comunitários de saúde e pessoas da comunidade apresentou-se enquanto possibilidade de cuidado em saúde em mental no território.
Desenvolvimento
Mediante a grande demanda de casos relacionados a sofrimento psíquico na comunidade, instituiu-se um turno de acolhimento em saúde mental, que a partir de uma atuação interprofissional tinha o objetivo de ser um espaço de escuta e acolhimento a pessoas que chegavam em sofrimento na USF. Nesse espaço as/os profissionais se propunham a pensar conjuntamente com a pessoa em sofrimento possibilidades articuladas as potencialidades do território e redes de cuidado tecidas neste. Além disso, se propunha ao diálogo com a rede de atenção à saúde e intersetorial quando necessário, o que por vezes era dificultado pela distância de outros serviços em relação ao bairro e as impossibilidades de deslocamentos mediante limitações financeiras.
A partir do turno de acolhimento, intencionava-se construir outras possibilidades de cuidado que não as intervenções comumente adotadas na USF. Dentro desse contexto, a escuta de um senhor que foi morador da região quando era ainda um espaço predominantemente rural, contando com granjas e roçados, e que estava passando por um processo de luto levou os profissionais envolvidos a conhecer parte da história do território. Nessa relação, foi trazida pelo usuário a identificação com a prática do plantio e deste como um espaço de cuidado para ele, sendo a reativação da horta comunitária da USF pensada enquanto uma possibilidade de cuidado.
Assim, a partir da iniciativa do morador e de profissionais residentes reativou-se a horta comunitária da USF, que gradativamente passou a envolver outras pessoas da comunidade e profissionais, em especial agentes comunitários de saúde. Passamos a nos encontrar semanalmente. O cuidado da terra, o plantio e a colheita eram acompanhados de lembranças que envolviam a prática da agricultura e outras experiências de vida, diferentes práticas de cuidado adotadas pelas pessoas envolvidas e histórias sobre o território que diziam também da história de vida das pessoas da comunidade.
No café compartilhado após o trabalho com a horta outros profissionais somavam-se ao espaço, de modo que este momento ia também desdobrando-se enquanto possibilidade de convivência e cuidado, propiciando uma maior vinculação entre residentes, os outros profissionais e as pessoas da comunidade. Após a primeira colheita realizada na horta e dificuldades relacionadas a qualidade da terra e a falta de nutrientes nesta, foi-se articulando com moradores do bairro alternativas dentro do próprio território, o que possibilitou também aos profissionais envolvidos o estabelecimento de outras relações com a comunidade.
Resultados
O deslocamento do espaço do consultório para a horta, a aprendizagem com as pessoas da comunidade sobre a terra e o plantio, o compartilhamento de saberes diversos e histórias, a criação de soluções conjuntas para resolver as problemáticas enfrentadas, a andança pelo território junto as pessoas que fizeram parte da sua construção, os vínculos tecidos e a invenção de outros modos de cuidado em saúde mental que não os comumente adotados na USF dizem dos efeitos que pouco a pouco foram compondo-se a partir do espaço da horta.
Certa vez, uma das ACS envolvidas na construção da horta, também em processo de sofrimento devido ao agravamento de questões de saúda de um dos filhos, falou da sua relação com esse espaço, trazendo ele enquanto um “projeto para trabalhar a mente”, afirmando que: “E a horta, a finalidade dela é essa. É você entender que tudo que você planta, você colhe e que você é capaz de botar uma sementinha e colher aquele fruto que você plantou [...] Eu acho que essa possibilidade de relação com a terra traz aumento da importância de esperar o tempo das coisas se darem, que há também um tempo da gente se sentir melhor”.
Foi possível observar também transformações na relação de usuários com a USF, como daquele primeiro usuário envolvido na sua construção, que relatava ter ido a unidade obrigado pela filha, afirmando não gostava de ir até lá. Com o tempo, esse espaço ganhou outros significados para ele, tecendo-se outras possibilidades de cuidado, e por vezes ele se fez presente na unidade quando precisava de acolhimento em relação ao momento que enfrentava. Meses depois, disse perceber não necessitar mais dos medicamentos psiquiátricas que vinha fazendo uso, contou-nos também sobre ter conhecido uma pessoa com quem começou a se relacionar e aos poucos foi reorganizando a vida, e trouxe a importância da relação com a horta e o acolhimento recebido para estas construções.
Considerações finais
O cuidado em saúde mental é hoje um dos grandes desafios enfrentados na Saúde da Família, sendo comum práticas que se reduzem a prescrição de medicamentos, renovação de receitas e encaminhamentos acompanhados da desresponsabilização dos profissionais quanto as situações de sofrimento apresentadas no território. Dentro desse contexto, a horta comunitária se mostrou enquanto um potente articulador de cuidado em saúde mental, possibilitando a produção de uma clínica ampliada, em que a troca de saberes e o estabelecimento de vínculos com o território e a comunidade ganha centralidade.
Diversas possibilidades podem se desdobrar dos agenciamentos produzidos nessas construções e na partilha de cuidados no encontro com o outro, na medida em que elas possibilitam a tessitura de redes de cuidado vivas, constituídas no espaço a partir dos movimentos e conexões. O alargamento dessas redes possibilita a produção de territórios afetivos e solidários, repercutindo na ampliação dos recursos que cada um tem disponível para reinventar a sua existência no enfretamento aos vários momentos da vida. A ampliação e fortalecimento de experiências como esta e outras que articulem possibilidades de cuidado que valorizem os saberes e modos de vida dos diferentes territórios perpassa pela urgente desconstrução da centralidade em práticas hierarquizadas e lógicas de controle, em que o profissional de saúde detém o saber sobre o outro e dita o que é correto, que impera ainda hoje no campo da saúde.