Apresentação
Objetiva-se narrar experiências vividas na Residência Multiprofissional em Saúde da Família e Comunidade, ligada a Secretaria Municipal de Saúde da cidade de João Pessoa/PB, elencando problemáticas compreendidas como fundamentais para pensar esse processo. Pretende-se, assim, discutir a formação em saúde a partir do espaço dos programas de residência, em que o território convoca a todo momento uma práxis que se articule a sua realidade e as potencialidades que ele oferece para a promoção do cuidado em saúde.
Problemáticas essas que perpassam também pela discussão de uma atuação interprofissional, ainda pouco abordada na maioria dos cursos de saúde, sendo por vezes um desafio quando nos deparamos com espaços em que a atuação em equipe multiprofissional organiza ou deveria organizar o processo de trabalho. Dentro desse contexto, faz-se importante refletir também sobre a relação da residência com as/os profissionais das equipes de saúde dos serviços, em que a construção do sentido desta enquanto uma modalidade de ensino em serviço é uma tessitura constante e diz de um processo de construção e troca.
Desenvolvimento
A experiência aqui relatada se deu entre os anos de 2022 e 2024, em uma Unidade de Saúde da Família Integrada, ou seja, que conta com a presença de quatro equipes de Saúde da Família, em um bairro periférico da capital paraibana. A imersão contava com duas turmas de residentes, estando entre as/os profissionais fonoaudióloga, enfermeiras, médico veterinário, psicóloga, farmacêutico e odontóloga, tendo enquanto preceptora a enfermeira de uma das equipes de Saúde da Família.
Enquanto atividades desenvolvidas pelos/pelas residentes ou em parceria com profissionais da Unidade de Saúde da Família (USF), destacamos as consultas interprofissionais, o turno de acolhimento em saúde mental, o desenvolvimento de uma horta comunitária, visitas domiciliares, atividades de saúde na escola, participação no grupo de Terapia Comunitária, salas de espera, entre outras.
As consultas de pré-natal eram um dos espaços construídos de forma interprofissional, em que a composição de diferentes saberes possibilitava tratar de problemáticas diversas e sinalizadas pelas gestantes como importantes, à exemplo de questões relacionadas a rede de apoio delas, expectativas e anseios que perpassavam aquele momento, planejamento familiar, dificuldades socioeconômicas e direitos socais, entre outras temáticas. Outro espaço constituído de forma interprofissional foi o turno de acolhimento em saúde mental, que tratava-se de um momento de escuta a pessoas que chegavam em sofrimento na USF e tinha o intuito de pensar conjuntamente com elas possibilidades de cuidado articuladas as potencialidades do território e a rede de apoio apresentada pelos sujeitos, bem como alternativas dentro da rede de saúde e intersetorial.
A partir do turno de saúde mental, desenvolveu-se enquanto uma das proposições de cuidado uma horta comunitária, construída por pessoas da comunidade e profissionais. A horta contribuiu para o fortalecimento do vínculo entre os atores envolvidos, sendo um espaço de compartilhamento de saberes e de fortalecimento de autonomia.
As visitas domiciliares também faziam parte da rotina das/dos residentes, sendo construída em parceria principalmente com os Agentes Comunitários de Saúde (ACS). Elas permitiram uma maior aproximação das/dos profissionais com a comunidade, bem como o reconhecimento do contexto sócio-histórico do território, possibilitando ampliar compreensões em relação a demandas apresentadas na realidade vivenciada.
Outro espaço bastante potente de construção com a comunidade integrado pelos residentes e sob a coordenação de uma ACS era um grupo de terapia comunitária, uma das poucas atividades em grupo ofertadas na USF, visto um discurso predominante entre os profissionais de que a comunidade não se engajava neste tipo de atividade. A terapia comunitária mostrava-se como um potente espaço de cuidado em saúde mental, em especial para mulheres de diferentes idades, e possibilitava a vinculação delas com o território, constituindo-se redes de cuidado que se estendiam para além daquele espaço.
Resultados
Apesar da potência das experiências trazidas, faz-se importante destacar as dinâmicas de poder que perpassaram essas construções na USF, visto as práticas hegemônicas instituídas, que em sua grande maioria diziam de uma clínica tecnicista, centradas em sistemas orgânicos e tecnologias especializadas. Essas problemáticas se apresentavam nas relações entre os próprios residentes, visto as diferentes experiências e compreensões sobre os modos de fazer em saúde, como também entre os residentes e os profissionais da USF.
Nesse sentido, destaca-se a importância da real garantia de espaços formativos e de discussão dentro da carga-horária dos programas de residência. Como também, de que estes contem com preceptores afinados com os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) e com a proposição dos programas de residência multiprofissional.
Diante das vivências partilhadas, pode-se afirmar que a experiência junto a residência multiprofissional em saúde possibilitou aos profisisonais residentes alguns dos seus objetivos, mas ainda há um longo caminho a ser percorrido para obtermos uma formação plural, que compreenda o campo da saúde como um espaço construído socialmente, que ultrapassa os limites do binômio saúde-doença. Tendo em vista que os residentes vieram em sua maioria de formações com práticas baseadas no modelo biomédico, e que o sistema de ensino tecnicista prevalece nas instituições de ensino superior, a residência propõe um olhar a partir de um novo espaço para a promoção do cuidado: o território.
É no território que as relações entre profissionais e usuários dos serviços de saúde são estabelecidas e fortalecidas, lugar o qual manifesta a história de um povo, com suas crenças, dinâmica social, economia local e infraestrutura, fatores estes que são determinantes na saúde da população. Essa conformação convida o profissional de saúde, nesse caso especificamente o residente, a sair de sua zona de conforto e se permitir a desenhar novas linhas de cuidado. A experiência da residência pode assim promover inquietações e desalojamentos, possibilitando reflexões sobre a importância de práticas relacionadas com os modos de vida da população, apresentando-se como um potente dispositivo para a mudança da formação de caráter clínico-curativista.
Considerações finais
A partir do exposto, pode-se afirmar que as experiências vivenciadas no contexto da residência representaram não só a expansão na oferta de práticas de cuidado para a comunidade, como também um importante espaço formativo para os profissionais residentes. Defende-se, assim, que as residências multiprofissionais em saúde se mostram enquanto um importante instrumento de formação, na medida em que possibilita reflexão e estruturação de práticas relacionadas com os modos de vida da população, a partir das suas reais necessidades e potencialidades.
Entretanto, a realidade em que as residências estão inseridas são perpassadas por diferentes dinâmicas de poder, em que a possibilidade do novo se depara a todo instante com a resistência do já instituído, neste caso, as práticas hegemônicas de saúde. Nesse sentido, as autoras defendem a importância de que os programas de residência multiprofissional assumam o caráter ético-político que perpassa o processo histórico de conformação e existência deles, de modo que exerçam efetivamente o seu papel enquanto espaços de formação e construção afinados aos princípios do SUS.