Apresentação: A população brasileira é bastante diversa e fatores como raça, classe, gênero e sexualidade atravessam a construção das pessoas, compondo suas multiplicidades e singularidades. Tais fatores são também fundamentais para compreender os modos de fabricação da vida e das relações, fatores os quais interseccionam-se entre si e permeiam as relações na sociedade. Dentro da lógica da sociedade capitalista, existe um certo padrão a ser seguido, aquele que é homem, branco, heterossexual e burguês terá acesso à direitos e aquele que, de alguma forma fuja ou se distancie deste padrão, sofrerá consequências, punições, violência e enfrentará dificuldades de acesso à direitos. Para manutenção da maneira que se organiza a sociedade capitalista e das relações de poder impostas, diversas estratégias de biopoder e necropolítica são operadas pelo Estado, através de seus diversos setores - saúde, educação, segurança pública - que autorizam que vidas podem viver e quais podem morrer, que privilegiando um padrão de existência e inviabilizando e violentando as demais formas de existir. A validação de existências em detrimento de outras também têm vertentes no campo da saúde, em especial, no campo do saber biomédico que contribui para o controle dos corpos através de estratégias relacionados ao controle biológico. Há uma certa lógica, um biopoder, que permite o campo da saúde de deliberar o que é “normal” e o que é “anormal” e qual vida vale mais a pena, capturado pela lógica hegemônica. Ao mesmo tempo, as micropolíticas do cuidado em saúde, as capturas e subjetividades envolvidas na produção de saúde a cada encontro ocupam lugar fundamental na produção de cuidado, no emergir possibilidades de cuidado inventadas e tecidas como fuga das estratégias de biopoder e necropolítica que tentam a todo tempo afirmar que determinadas vidas não valem a pena. Desenvolvimento: este trabalho é fruto da pesquisa realizada para a conclusão da Residência Multiprofissional em Saúde da Família, da Universidade Estadual de Londrina, intitulada “Navegando pelas tramas de cuidado à população LGBTQIAP+: Mulheres que se relacionam com mulheres”, a qual foi realizada a partir de encontros com usuárias e trabalhadoras de uma Unidade Básica de Saúde de um município do Norte do Paraná. A imersão da pesquisa e os encontros com trabalhadoras e usuárias ocorreram entre abril e dezembro de 2022. Neste resumo, será dado destaque à seção relacionada ao encontro com uma usuária do serviço, moradora do território. Tratou-se de uma pesquisa de caráter qualitativo, cujo percurso metodológico escolhido foi a cartografia. A cartografia enquanto abordagem metodológica tem sido utilizada em pesquisas na saúde na perspectiva de que a processualidade e o trajeto da pesquisa interessa muito mais que o próprio produto final, muitas vezes distanciando-se de perspectivas mais positivistas e cartesianas, que buscam resultados duros. Subvertendo a lógica da neutralidade científica, convocando a pesquisadora a imergir, “imundar-se” e emaranhar-se no processo da pesquisa. Esta pesquisa foi atrelada ao projeto da Residência Multiprofissional em Saúde da Família da Universidade Estadual de Londrina, intitulado: “Atuação da Residência Multiprofissional em Saúde da Família em Unidades Básicas de Saúde do Município de Londrina” aprovado pelo comitê de Ética em pesquisa da Universidade Estadual de Londrina (CEP/UEL) sob o parecer nº 1.154.455/2015, sob o número CAAE: 46699415900005231. Além da aprovação em comitê de ética, foi encaminhada à Secretaria Municipal de Saúde do município de Londrina uma carta de apresentação contendo os objetivos da presente pesquisa. Resultados: Daremos visibilidade à fragmentos da seguinte seção: “Nuances de multidões: conhecendo Fernanda.”. Fernanda escolheu não construir muitas amizades, pois, segundo ela, é muito fácil ser confundida com “quem não está fazendo coisa boa”, para ilustrar, Fernanda nos conta sobre um dia, em que havia bastante movimento no bar da sua mãe e que ela foi sair pra levar o lixo. No momento em que ela sai de casa, a Polícia Militar (PM) faz uma abordagem e agride todos que estavam no bar, inclusive ela, que estava em período pós cirúrgico. O que fez com que ela ficasse extremamente machucada, toda ensanguentada, com a ferida aberta, e, após perceber a situação, a PM foi embora, deixando Fernanda ali. Depois desse ocorrido ela preferiu não sair mais e não estar muito na rua, por medo de ser abordada. Fernanda é uma mulher que se reconhece enquanto mulher parda, reside da periferia da cidade, que se relaciona com mulheres, performa seu gênero e sexualidade de forma distante ao esperado na lógica do sistema capitalista racista, sexista, classista, misógino e LGBTfóbico, e que vive a interseccionalidade desses diversos fatores na sua vida cotidiana. Através da cena narrada por Fernanda emergem estratégias que compõem as ações necropolíticas do Estado, que com frequência lança mão de ações violentas (principalmente através de seu braço armado - a polícia militar) para aniquilar vidas dissidentes. A necropolítica simboliza-se através do poder do Estado de dizer quem pode viver e quem deve morrer, que vida vale a pena ser vivida, que vida merece cuidados, que vida deve deixar de existir, a partir da ideia de quem é útil ao Estado e de quem é descartável, dentro da lógica capitalista operada através do controle e disciplinaridade dos corpos, na perspectiva da biopolítica e do biopoder. Fernanda, nas suas tecituras de cuidado, buscando sua sobrevivência apesar dos movimentos necropolíticos, relata suas relações familiares e com sua namorada como relação que são produtoras de cuidado, relações produtoras de vida, como rotas de fuga das violências vividas. Considerações Finais: As estratégias do biopoder e da necropolítica permanecem atuantes na deliberação de quais vidas devem viver e quais devem morrer, intimamente entrelaçadas com a forma capitalista que organiza a sociedade e com o padrão imposto aos corpos. O encontro com Fernanda e com sua história, convoca a possibilidade de imaginação e invenção de outras formas de ser, para muito além deste mundo que nos é apresentado. São nos movimentos e nas relações que reinventamos as formas de compor, fabricar e conduzir relações. É no movimento de pensar e repensar interseccionalidades e violências que temos a possibilidade de fabricar outros mundos a partir da potência dos encontros e das relações, produzindo novos modos de subjetivação e rotas de fuga.