Representatividade — Relato de experiência da negritude discente nos cursos da saúde

  • Author
  • Sarah Esther Augusta Murta Ambrósio
  • Co-authors
  • Daniel Simões Reis dos Santos , Athus Paulo Florenço , Otávio Augusto Coelho , Hiolanda Oliveira Ruas
  • Abstract
  • Apresentação

    Ao observar, como as diversas instituições sociais desenvolvem papéis de desigualdade racial que transcendem o racismo do seu nível individual para o coletivo, pode-se inferir a construção desse processo nas próprias raízes do meio social, imputando ao status quo o que é denominado racismo estrutural. A partir desse ponto, fica claro que não há como o meio acadêmico expressar exceção, o que permite a construção histórico social de uma baixa representatividade de alunos negros nas universidades. Fator esse, que ganha ainda maior impacto nas áreas da saúde por diversos fatores, mas há dois pontos fundamentais: A área da saúde carrega consigo um perfil estudantil de uma classe racial predeterminada e pautada fortemente no racismo, e esses estudantes que carregam esses signos, serão os futuros profissionais de saúde que lidarão com uma população brasileira majoritariamente negra.

    No entanto, essa baixa representatividade negra nos cursos de saúde, não se constrói isoladamente, ela recebe afluentes causais diversos que refletem — de forma dissociada e interligada — na construção da vivência dos alunos negros em Instituições de Ensino Superior (IES). É a partir desse contexto que se desenvolve este relato, visando apresentar as experiências comuns compartilhadas entre alunos negros ao adentrarem cursos de graduação em saúde de IES. Nesse sentido, o presente escrito explora a área da saúde com uma visão multifacetada que traduz o real conceito de não-pertencimento e, assim, demonstra a dificuldade de permanência desses estudantes dentro da universidade.

    Desenvolvimento

    Trata-se de um relato de experiência elaborado por cinco estudantes negros da área da saúde de diferentes IES. O grupo é formado por cinco estudantes de medicina. O relato reflete as experiências no período de abril de 2023 a abril de 2024. O cenário do estudo são os cursos de medicina das IES às quais esses estudantes frequentam.

    O presente relato de experiência, surgiu diante da necessidade de evocar o impacto das questões de raça na permanência e vivência de estudantes negros da área da saúde,  dentro das IES. Sob essa ótica, o racismo que opera estruturalmente na sociedade atual impacta de forma direta em diferentes setores que a compõem, sobretudo no que tange a falta de oportunidade e de direitos. Por conseguinte, os discentes em tela encontram-se sós dentro das IES, uma vez que o processo que antecede a sua entrada já é excludente. Ainda hoje, existem nos cursos da área da saúde uma falta de representatividade de negros, o que, somado ao ambiente acadêmico majoritariamente branco, torna a trajetória de formação desses discentes, desafiadora. Sendo, portanto, de extrema importância compreender suas experiências nas IES, elencando os problemas que permeiam essa conjuntura.

    As etapas para a estruturação do relato de experiência se deram da seguinte forma: recuperação do processo vivenciado pelos estudantes, com a reconstrução da história e ordenação e classificação das informações; análise, síntese e interpretação crítica das experiências evocadas na etapa anterior, pontuando as falas concordantes e discordantes; elaboração crítica das conclusões acerca dos dados elencados na etapa anterior e a comunicação manuscrita da aprendizagem promovida por meio da experiência vivenciada.

    Resultados

    Dessa forma, tocante ao tema debatido, ressalta-se nesse escrito como as desigualdades de renda, raça e acesso dialogam com a possibilidade de vivência plena do ensino superior. Discentes negros, em sua grande maioria, compõem dentro das universidades os grupos menos privilegiados, sendo afetados diretamente por questões de renda, que dificultam sua permanência em razão da não possibilidade de vivência exclusiva da academia — tendo assim que conciliar suas formações com trabalhos extras — e a falta de disponibilidade e acesso aos materiais necessários e/ou facilitadores do estudo. Somado a isso, é importante destacar dificuldades espaço-geográficas com relação à distância de suas moradias dos campi das faculdades e áreas de aprendizado, fator esse que por vezes dificulta seu deslocamento e impacta em sua frequência e possibilidade de realização de diferentes atividades. 

    A experiência de solidão, ser único e estar distante de seus pares, em um ambiente majoritariamente branco e elitista, como este observado nos cursos da saúde, é fator comum a diversos corpos negros nas IES, que nelas fomentam mudanças de suas realidades.

    Assim, negros compartilham e resistem neste contexto social, majoritariamente desfavorável, que escancara suas dificuldades em falar e ser ouvido, e, ignora suas demandas, construindo, dessa maneira, uma sensação de não pertencimento, a partir de diferentes fatores causais. Sendo dois deles: forte ausência de docentes negros no ensino superior e falta de discussões obrigatórias, que componham a grade comum curricular, e, que busquem evocar a temática racial no Brasil e sua interseccionalidade com diferentes setores sociais, sendo nesse caso, o da saúde o foco em questão. 

    Diante disso, o corpo docente, responsável pelo ensino-aprendizagem, pouco se importa ou demonstra se importar com a possibilidade de criação de uma saúde menos racista. Torna-se um desafio incessante, a formação de profissionais que entendam o racismo como um componente a mais dos determinantes sociais da saúde e que saibam atuar de maneira profissional diante de demandas apresentadas pela população negra. 

    Dessa forma, há uma retroalimentação implícita direta do racismo estrutural, apoiada na falta de desenvolvimento de mecanismos de sobrevivência, contabilizada na permanência, e, consequentemente, na manutenção do bem-estar de um corpo docente e discente negro, nos espaços que representam a academia.

    Nesse sentido, o ambiente universitário torna-se prisão para aqueles que inicialmente encontraram na educação possibilidade de mudança estrutural. Ser só em um contexto tão desafiador como o do ensino superior, implica na vida desses estudantes um desafio a mais, além daqueles observados no constructo social em si. Diante disso, para além de um prejuízo individual, observa-se a perda coletiva da não utilização das IES como ferramenta para mudança de estigmas e preconceitos enraizados socialmente, ao não impulsionar a formação de pessoas negras.

    A partir da experiência apresentada, é notável que alguns fatores se destacam como dificultadores na vivência negra nos cursos da área da saúde. Podemos destacar, então, dois obstáculos principais: a falta de letramento racial abrangente entre os não negros e a baixa organização institucional e estrutural da possibilidade de aquilombamento entre negros.

    O letramento racial, processo natural da socialização, dentro do contexto da falsa democracia racial, é pautado fortemente pelo racismo, levando a construção de uma indiferença patológica em relação à questão. Dessa forma, a necessidade de um debate constante acerca das questões raciais e sua influência direta na formação profissional perde força diante de um constructo que ignora a importância da pauta e negligência abordá-la academicamente. 

    Da mesma maneira, ao não perceber a sensação de solidão de diversos negros como relevante, as IES negam a esses estudantes a possibilidade de buscarem, institucionalmente, acolhimento e construção conjunta de um ambiente mais igualitário. Além disso, dificultam, ao não fornecerem mecanismos, a possibilidade de busca coletiva, impulsionada pelos próprios acadêmicos, a criação de coletivos, espaços de acolhimento e luta.

    Considerações finais

    Considerando os fatos citados, ressalta-se a necessidade de uma capacitação antirracista para os docentes, tendo em vista, o potencial formador desses profissionais. Além da inclusão de disciplinas obrigatórias, cujas ementas fomentem uma ampla e vasta discussão do tema retratado, racismo e saúde. Possibilidade geradora, de uma literatura, que possibilite relatos, experiências, estudos e que torne a grade curricular desses cursos, um canal eficaz, de inibir ações que violam a participação efetiva e respeitosa de discentes negros. 

     

  • Keywords
  • Educação médica, Ensino superior, Racismo, Estudantes
  • Subject Area
  • EIXO 6 – Direito à Saúde e Relações Étnico-Raciais, de Classe, Gênero e Sexualidade
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