APRESENTAÇÃO
A população negra brasileira é largamente afetada pelo racismo estrutural, tendo constantemente direitos básicos negligenciados, como segurança alimentar, acesso a saneamento básico, moradia e boas condições de trabalho, afligindo a saúde e bem-estar dessa população. Nesse contexto, práticas institucionais e profissionais de violências direcionadas à população negra e a negação do direito de acesso pleno e humanizado aos serviços de saúde são observados.
Observa-se que o Estado, estruturalmente racista, se coloca como primeiro violador do povo negro quando não garante direitos previstos constitucionalmente. Ainda, as instituições e seus profissionais se colocam como agentes sociais e políticos que contribuem, direta ou indiretamente, na reprodução de violências raciais. Este cenário evidencia, portanto, a necessidade de ações catalisadoras de transformações sociais e institucionais, não obstante, de mudanças de paradigmas teóricos e práticos de profissionais responsáveis pelo acolhimento da população negra nos serviços de saúde. Considerando o pressuposto, este relato de experiência aborda a importância de uma liga acadêmica sobre saúde da população negra na formação de profissionais de saúde antirracistas.
DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO
O presente trabalho traz um relato de experiência elaborado por cinco estudantes da área da saúde de Instituições de Ensino Superior (IES) do Sudeste Brasileiro. As reflexões deste relato compreendem o período entre 05/2021 e 05/2024. O cenário do estudo é o contexto das ações de uma Liga Acadêmica (LA) de Saúde da População Negra, fundada em 2020, em uma IES e formada por discentes de, cursos da área da saúde, como enfermagem, medicina, psicologia e nutrição, dentre outros, dessa universidade e outras IES. A liga tem o ano letivo com duração de dois semestres e surgiu a partir de reflexões sobre desigualdades raciais no acesso à saúde, da falta de abordagem das questões raciais na grade curricular obrigatória, que resulta em deficiências na formação dos estudantes e educadores e do entendimento de que o serviço de saúde pode perpetuar ou combater o genocídio do povo negro.
A LA busca atuar nos 3 eixos que regem o ensino superior: ensino, pesquisa e extensão. No eixo do ensino, a liga objetiva promover o aprendizado sobre a saúde da população negra e como o racismo impacta na saúde dessa população, assim, essa atua por meio de aulas aprofundadas, dirigidas por especialistas nos temas propostos. As atividades acontecem quinzenalmente, com temas focados na população negra, como: “Saúde da Mulher”, “Saúde da população idosa”, “Autopercepção de negritude”, “Consciência e letramento racial” e “Nutrição da comunidade quilombola”, de modo a tornar os ligantes aptos a reconhecer e atuar ativamente no combate ao racismo através das condutas enquanto futuros profissionais da saúde.
Destarte, ainda que incipiente, o eixo pesquisa busca impulsionar e promover mais recursos na literatura sobre a população negra. Tal ação visa evidenciar e romper com a negligência existente na sociedade sobre temáticas pautadas na luta antirracista e no racismo nos setores de saúde. Assim, a liga age nesse eixo por meio do incentivo à produção de pesquisas e publicações, tendo realizado escritos científicos nos anos de 2022 a 2024.
Num âmbito mais prático, a liga atua no eixo extensão com ações coordenadas para o cuidado da saúde, em uma Comunidade Quilombola, localizada em uma cidade da região metropolitana onde está situada a Universidade, levando em consideração a consciência de que a troca de saberes entre comunidade e estudantes é benéfica intelectualmente e ao nível social para os discentes. As ações, já realizadas na comunidade, não ocorreram de forma intervencionista, mas dialógica, aberta ao outro e descentralizada, com ações guiadas e intermediadas pelas próprias lideranças locais em conjunto com especialistas das áreas dos temas propostos, por exemplo, a oficina em nutrição, realizada em 2023, que discutiu a relação entre os conceitos de saúde, ancestralidade e alimentação com tal comunidade.
A elaboração do relato de experiência seguiu as seguintes etapas: 1. Análise documental; 2. Resgate mnemônico das atividades e experiências vivenciadas no contexto das ações da liga acadêmica; 3. Análise crítica dos conteúdos resgatados; 4. Compilação e apresentação dos resultados.
A análise documental valeu-se dos documentos oficiais para criação da liga, assim como atas de reuniões e eventos e cronogramas de aulas. O resgate mnemônico foi realizado por meio da narrativa livre de cada estudante do presente relato, que vivenciaram as atividades da liga acadêmica como ligantes. Dessa forma, as narrativas orais descreveram fatos e impressões subjetivas do processo de aprendizagem de cada estudante acerca das ações realizadas na liga. A análise crítica dos conteúdos resgatados buscou identificar e consolidar as narrativas coincidentes e discutir as divergências de perspectivas obtidas na etapa anterior. Na etapa final, de compilação e apresentação dos resultados, foram ordenadas e organizadas as inferências subjetivas identificadas na etapa anterior.
RESULTADOS
Os efeitos centrais da LA situam-se no entorno da construção coletiva de futuros profissionais antirracistas. A liga demonstra-se como produtora de benefícios educativos e sociais, tanto para a comunidade acadêmica quanto para a sociedade. Assim, durante as atividades de ensino, o debate e o questionamento são estimulados com o fito de proporcionar que os sujeitos adquiram autonomia para questionar o padrão vigente e formular perspectivas sobre o cuidado em saúde de maneira racializada e crítica. Dessa forma, a Liga adquire uma posição de destaque ao discutir temáticas negligenciadas e fornece o suporte necessário para formação acadêmica de profissionais com uma postura antirracista, com maior capacidade de intervir em situações discriminatórias recorrentes nos sistemas de saúde.
Ademais, a partir do projeto de extensão os ligantes têm a oportunidade de vivenciar a imersão e a troca de informações com os habitantes do Quilombo. Tal ação tem resultados benéficos para os ligantes que, a partir do contato com as vivências locais, aprendem os aspectos culturais do cuidado em saúde tradicional, pautados em aprendizados ancestrais transmitidos a cada geração dos quilombolas, como o uso de plantas medicinais. Além disso, os estudantes são empoderados a exercer seu aprendizado teórico, levando à comunidade educação em saúde de maneira acessível e consoante com as tradições locais.
Outrossim, projeta-se para o ano de 2024, conduzir os novos ligantes para conhecer a comunidade e efetuar ações com os temas: saúde infantil, nutrição e saúde mental. Orientando-se em aulas relacionadas aos temas das ações para sua melhor estruturação. Dessa forma, a Liga Acadêmica fornece um panorama acadêmico completo aos ligantes sem se esquecer de oferecer retorno à comunidade. Destarte, a partir do eixo pesquisa os ligantes são empoderados a buscar por pesquisas, a questionarem os conhecimentos acadêmicos, a se envolverem com os estudos acerca da população negra e, dessa forma, estimular a produção científica e a atuação em saúde baseada em evidência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Por fim, compreende-se que diante do racismo estrutural brasileiro, do racismo institucional no campo da saúde, também diante de práticas profissionais ainda pautadas pelo racismo e da lacuna nos cursos de formação acadêmica sobre a pauta racial, conclui-se que a Liga Acadêmica assume grande relevância acadêmica e social em promover ações de discussão e combate ao racismo a partir da formação de futuros profissionais de saúde antirracistas. Dessa forma, apesar da ação da LA ser local e direcionada a uma pequena parcela dos estudantes de saúde, essa tem a capacidade de inspirar outros ambientes acadêmicos a promoverem tal debate e implantar iniciativas similares.