A adolescência, em seu contexto e desenvolvimento a partir da perspectiva psicodinâmica do ser humano, é o momento mais crítico do encontro a si na formação da subjetividade do sujeito. Caracteriza-se enquanto um processo em que o adolecente inicia movimentos de desvinculação de âmbito familiar, ampliando sua convivência social e construindo referenciais identitários para além de seu núcleo familiar. Assim, estabelece relações com seus pares, novas influências, grupos e redes singulares, que lhe trazem outras prospecções de mundo. Quando se abordam as questões de gênero, os adolescentes que se identificam como Lésbicas, Gays, Bissexual, Transexual, Queer, Intersexo, Assexuais/Arromânticas/Agênero, Pansexuali, Não-binária e outres (LGBTQIAPN+), enfrentam barreiras, resistências e preconceitos e são por vezes excluídos do núcleo familiar, da comunidade, ou até expulsos de casa. Nesse contexto, o acesso ao cuidado em saúde, humanizado e acolhedor, pode atuar como fator de prevenção de adoecimentos e promotor de saúde na comunidade LGBTQIAPN+ adolescente. Diante dessas considerações, esse trabalho tem como objetivo explorar os efeitos da heteronormatividade na construção da subjetividade de adolescentes trans, bem como os possíveis desdobramentos para a saúde mental, a partir do relato de experiência de acolhimento de um casal de adolescentes em um serviço de saúde. A discussão será pautada na escuta psicológica realizada no Ambulatório Multiprofissional de Atenção à Saúde da População LGBTTQIA+ (AMBITRANS), localizado no município de Santa Cruz do Sul. O estudo de grupos historicamente marginalizados e discriminados, traz consigo a desconstrução de saberes estabelecidos como “norma”. A heteronormatividade junto de seus preceitos rígidos, pautada no binarismo de gênero, carrega em si múltiplas violências, preconceitos e exclusão de outros corpos, gêneros e sexualidades que, ao serem atravessadas e percebidas dentro da realidade cisgênero, produzem exclusão e inumanidade. Esses conceitos serão discutidos a partir da experiência de estágio em Psicologia e da escuta psicológica do caso de um casal de adolescentes. É importante destacar que as discussões e reflexões foram instigadas pelo Grupo da Pesquisa sobre Adolescências (GRUPAD/UNISC), que trabalha há 14 anos com promoção e educação em saúde, na região. Por questões éticas, foram utilizados nomes fictícios de flores (Rosa e Lírio) para preservar a identidade do casal que será apresentado a seguir. Lírio, refere-se a um menino trans de 17 anos, e Rosa uma menina cisgênero de 16 anos. O primeiro contato do casal com o serviço foi por meio de mensagem via Whatsapp, sendo um pedido para atendimento psicoterapêutico. Rosa procurou suporte destinado a seu namorado Lírio. Assim, foi agendado um acolhimento para escuta inicial, com o objetivo de compreender as demandas de Lírio, e um segundo momento para a devolutiva da sessão, totalizando dois encontros. No primeiro encontro, Lírio chegou acompanhado de Rosa, que havia pedido para participar da sessão. Durante a escuta, Lírio expôs sua relação familiar, em particular com sua mãe, que se estabelece de forma bastante conturbada. Relata que no tempo que ainda se identificava como uma mulher cis, sua mãe desaprovava seu relacionamento com Rosa e ressalta que houve um amplo distanciamento pessoal de sua mãe quando declarou a ela que se identificava com um menino trans. Dentro de sua casa, conta que era considerado um estranho, tratado como um indivíduo sem voz e não desejado. Seu sofrimento gerou um estado psicodinâmico fragilizado. Lírio relatou que havia realizado tentativa de autocídio algumas vezes, o que era visível nas marcas de autolesão em seus braços. Em um de seus relatos, citou que já chegou a apontar uma faca para si mesmo, apenas para fazer sua mãe ouvi-lo. Ficou notável em sua fala a manifestação de seu sofrimento, além da aparência cansada e a expressão visivelmente triste, causada pela falta de suporte e sensação de não pertencimento. Um jovem desestruturado em seu âmbito social, por conta de sua identidade de gênero. É possível perceber o seu desamparo por meio de seu relato e suas tentativas de se reconstituir, apoiando-se principalmente em seu relacionamento amoroso atual para continuar a viver. Lírio e Rosa realizavam acompanhamento no Centro de Atenção Psicossocial da Infância e Adolescência (CAPSIA), porém, citaram que há algum tempo não compareciam no serviço, pois percebiam que não estavam suprindo suas demandas. Rosa, que em primeiro momento solicitava atendimento para o namorado, participou dos encontros junto com Lírio. De forma tímida, cita que, assim como Lírio, não possui uma relação estável com sua mãe, explicando que a mesma nunca validou seus sentimentos de sofrimento. Ela expõe seu histórico de múltiplas violências sofridas, relacionadas à questões de gênero, ao longo dos anos, bem como, o desamparo familiar relacionado à essas experiências. Visto a gravidade da situação citada, foi realizado o contato com o CAPSIA para maior entendimento das violências relatadas. O que me chamou atenção na conversa com a equipe, foi que Rosa, durante um período de questionamentos e descobertas, se identificava como um menino trans , a equipe conduziu um olhar que acabou por deslegitimar a experiência dela, evidenciando uma busca por investigar a fidelidade da identificação de gênero. O que fica explícito nos discursos vistos é a normalização de comportamentos relacionados às experiências de violência e ao não reconhecimento, ou até mesmo silenciamento de seus sofrimentos. Tais repressões causadas pelos contextos sociais não podem ser desvinculadas, também à violência estrutural de gênero, nesse caso, foi possível identificar determinadas situações onde essas opressões estão emaranhadas como: no âmbito familiar, laboral e na rede de saúde. A agressão velada descrita nos discursos, ressalta a normatização do comportamento institucionalizado na sociedade de relativizar a violência exercida aqueles que fogem do padrão heteronormativo , em que suas angústias são posicionadas no lugar de depreciação e isolamento. Frente ao caso, ressaltamos que uma sociedade regida pela imposição da heteronormatividade compõe uma visão acerca de tudo que não pertence às normas binárias de repressão, sendo essa, fruto social de sofrimento psíquico ao sujeito. O sofrimento visto nas relações interpessoais e o afastamento social, por vezes intrínseco a estas mesmas vinculações, é visto no âmbito da saúde clínica. A escuta do profissional da saúde atravessado pela heteronormatividade instituída socialmente, se qualifica como uma escuta fadada à insensibilidade das problemáticas do sujeito e gerando, consequentemente, um desamparo institucional na transadolescência. A violência sofrida e regida nessas relações está naturalizada em uma norma heterossexual, refletidas pela falta de validação de suas demandas. Lírio e Rosa, são a materialização do desamparo institucional existente no atendimento e no abandono social existente para a população LGBTQIAPN+. Com isso, a adolescência de muitos jovens trans, que não possuem redes estáveis para proporcionar o devido acolhimento, em sua fase crucial do desenvolvimento vital, torna-se geradora de farto sofrimento psíquico. Por fim, atentamos que, é necessária a luta contra um sistema já imerso na heteronormatividade, e o incentivo da busca técnica de conhecimento aos profissionais de saúde deve ser sempre ressaltada para assim gerar um local de acolhimento às demandas de gênero, e proporcionar visibilidade para a existência da transadolescência.