O processo de formação em uma graduação requer deslocamentos de incômodo. Adquirir conhecimentos nos retira de uma zona de conforto, faz com que se enfrente uma realidade desconhecida, e por conseguinte, nos coloca em contato com o mundo real, com todas as suas dificuldades. O presente trabalho trata a respeito da experiência de um devir-psicólogo, da elaboração e do encontro com o primeiro emprego e as dificuldades de ser um profissional do Sistema Único de Saúde – SUS no âmbito da Saúde Mental em um Centro de Atenção Psicossocial localizado em município do nordeste paraense. Utilizo-me então do método da Escrevivência, cunhado por Conceição Evaristo, que diz respeito a uma forma de transpor nossas narrativas de vida por meio da escrita, fazendo desse movimento produção e ampliação subjetiva. É um escre(vi)ver, a partir de nossas bagagens subjetivas. Ao adentrarmos o mercado de trabalho após a formação, somos colocados diante de desafios que a psicologia não nos prepara por completo, afinal, é um curso predominantemente branco e elitizado, que carregou consigo teorias colonialistas e ocidentais. Sendo assim, após sair de uma graduação, jamais estaremos preparados 100% para a realidade, uma vez que esse devir-psicólogo se faz no contato com ela. Especialmente, quando pensamos na Amazonia em relação as práticas dos Centros de Atenção Psicossocial, pensamos em territorialidade, uma vez que estes Centros tomam como um dos princípios esse atravessamento. Com relação a minha experiência, após sair da graduação, uma oportunidade bate à porta: ser psicólogo de um CAPS no nordeste paraense. A partir daí, lembro-me de a partir de meu arcabouço teórico adquirido, que inclusive preparou-me para o entendimento da realidade da Amazônia, quando cheguei ao local a insegurança era o meu principal sentimento. O medo do inesperado, da prática. Principalmente por, ao pensar a territorialidade do lugar, deparei-me com um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano – IDH, do país. Assim, esperava que fosse encontrar diversos casos de violência e de atravessamentos sociais que se relacionam com a violação de direitos humanos. Logo de início, devido ao conhecimento teórico da política do CAPS, cheguei perguntando à coordenadora e assistente social, em uma espécie de reunião de boas-vindas, se haviam atividades de grupos, se haviam recursos artísticos para que eu pudesse trabalhar, se haviam atividades dentro do território, enfim. Todas estas colocações, que estão de acordo com a política da territorialidade, eram inexistentes no serviço. O sentimento de frustração e revolta crescia, entretanto, precisamos compreender que não daremos conta de tudo e que nem tudo é como deveria ser, especialmente no âmbito do SUS. Conforme realizava os primeiros atendimentos, me deparava com a realidade local, pautada em violações de direitos, tais como: abuso sexual infantil, violência de gênero, racismo (muitos casos envolvendo crianças). A realidade social desse lugar, como muitos lugares da Amazônia, perpassava por mim e me confrontava no seu sentido mais difícil. Ser psicólogo requer esse contato com o outro, essa troca, especialmente quando se fala em CAPS, uma vez que precisamos estar territorializados onde estivermos. Com o passar do tempo, fui realizando atendimentos em uma estrutura precária. Além de questões estruturais, a distância e dificuldade geográfica que os usuários da zona rural enfrentavam era um dos problemas para que chegassem até o serviço. Outro ponto era que, por ser uma cidade bastante pequena, as pessoas se conheciam e ficavam receosas de realizar atividades em grupo, ou mesmo comparecer em horários aos quais algum conhecido poderia encontrá-la no serviço. Demorou algum tempo para que compreendesse que todas aquelas questões envolviam coisas que estavam além de mim enquanto profissional e ser humano. Somos o tempo todo demandados a dar respostas, especialmente na psicologia. Por este motivo, fazer um exercício de reflexão a respeito das problemáticas sociais no território em que eu estava foi uma importante ferramenta, ajudando-me a lidar com o inesperado e um devir-psicólogo que ia se construindo por meio da vivência direta no serviço. Apesar de toda dificuldade, compreender que fazer o que consideramos pouco, muitas vezes vem a ser um serviço de grande impacto, uma vez que, apesar de tudo, eu obtinha um bom retorno das pessoas que eu atendia. Em muitos momentos o choro e a sensação de insuficiência eram bastante presentes pois, do que chamamos de teoria, para o contato com a realidade é um grande salto. Além dos exercícios de não responsabilização individualizante por problemas de uma magnitude social, os laços afetivos que construí no serviço eram de extrema importância. Tanto com pacientes, como com trabalhadores e trabalhadoras e a própria comunidade que me acolhia. As dificuldades ganhavam um novo sentido e eu ia adquirindo força para conseguir suportá-las. Um dos principais aprendizados foi compreender que estes serviços têm falhas causadas por uma má gestão, pela falta de investimento na RAPS e também pelas falhas no percurso formativo dos trabalhadores, associadas as dificuldades sociais e econômicas do próprio território. Diante disso, o exercício de pensar criticamente e de saber de quem e onde cobrar, é um dos pontos mais importantes quando pensamos em políticas públicas. No caso brasileiro as redes de atenção podem ser acompanhadas e fiscalizadas pelos conselhos regionais ou municipais de saúde, garantindo a participação cidadã na elaboração, fiscalização e acompanhamento das redes. Pensar nos resultados e nas reverberações desta experiência, coloca-me, e aqui convido-os também, a refletir a respeito de nossas práticas em saúde no território amazônico. Os Cetros de Atenção Psicossocial são ótimas estratégias no que tange sua política teórica. Quando vamos para a realidade, especialmente na Amazônia, um território que há muito é silenciado, lidamos diretamente com uma série de violências e de atravessamentos sociais, políticos que nos levam ao próprio questionamento e reflexão. Diante de todas as dificuldades, buscamos estratégias de atendimento e de realização de trabalho mínima para que as pessoas não permaneçam desassistidas. Longe de ser uma crítica aos modelos de atendimento dos Centros de Atenção Psicossocial, mas sim uma escrevivência que convida a uma provocação para que possamos pensar nossas práticas em relação às problemáticas amazônicas, por meio de cobranças efetivas, para que o peso e a responsabilização não recaiam nos profissionais, ocasionando adoecimento psíquico e consequentemente deixando a população amazônica desassistida. É preciso pensar políticas públicas que levem em conta a realidade de cada território, neste caso levando em conta o fator amazônico marcado por uma geografia desafiante, grandes distâncias, cidades com baixa densidade tecnológica, dificuldades de acesso e uma variedade populacional importante que exige adaptação dos serviços para atender a demandas das populações. Fomentar o investimento em educação permanente para ajudar os trabalhadores a enfrentar os desafios do cuidado e o fortalecimento dos conselhos de saúde, como forma de efetivar o controle social.