Introdução:O cinema frequentemente recria comportamentos e questões em uma dimensão que destaca uma forma distópica ou heterotópica do cotidiano, sendo importante para a reflexão social, que coloca o espectador em constante condição de aprendizagem por estranhamento com o cotidiano. Muitos filmes têm colocado em pauta a relação entre condições climáticas e saúde. Com o filme “Não Olhe para Cima” (Don’t Look Up, 2021), fomos provocados a refletir sobre o comprometimento da vida a partir dos desastres relacionados ao aquecimento global, que ameaça as condições de habitação, ecossistemas e as relações que garantem a vida com dignidade e bem-estar.
Objetivos:Refletir sobre os aspectos sociais e políticos relacionados ao aquecimento global a partir da sátira na narrativa do filme.
Metodologia:Refletir, contextualizar e dialogar com a mensagem fílmica e a circunstância real sobre aquecimento global.
Desenvolvimento:Na contramão das muitas teorias e associações que surgiram, desde a estreia do filme, entre a narrativa e as questões relacionadas ao aquecimento global, retomamos a temática apresentada no 15º Congresso Internacional da Rede Unida, agora para estabelecer conexões entre a história fictícia e a condução da COVID-19 no Brasil, para compreender a expansão da crise sanitária potencializada pelo negacionismo e explicitada pelas condições de adoecimento e mortes diárias, atrasos na articulação e devolutiva de respostas ao enfrentamento da pandemia. Nesta análise, optamos pela mensagem mais óbvia do filme: as condições climáticas adversas e os riscos à vida e à saúde de pessoas. O enredo do filme mostra uma estudante de Astronomia que descobre um cometa gigante orbitando dentro do sistema solar, que, em breve, atingiria a Terra. A informação é confirmada por um professor-pesquisador e por diversos cálculos que apontam sempre para o mesmo resultado: a inevitável catástrofe. Mesmo com os dados apurados, os pesquisadores encontram dificuldade de convencer as pessoas sobre o desastre real, visto que elas estão conectadas com o imediatismo do andar da vida. Mesmo quando acreditam na ameaça global, mantêm-se o interesse em ganhar dinheiro, inclusive com o desastre. Esse é o ponto que nos aproxima da análise e do objetivo deste resumo. Há uma metáfora na ficção: o aquecimento global não é único como o cometa, mas uma consequência de problemas causados pelas nossas próprias ações, com muitas indústrias acelerando o processo e com muita conspiração política apoiando a expansão capitalista. A desconexão com o contexto é uma forma de alienação produzida pelo interesse capitalista que, para enfrentar sua crise estrutural, objetiva ainda mais a existência humana, como produtores e consumidores focados nas relações de consumo. Assim, o filme, como observamos na realidade, critica o negacionismo e a manipulação social, com a minimização do risco de desastres naturais como consequência das mudanças climáticas e os impactos na saúde das pessoas. No filme, a população é representada por uma figura política do Estado, que é a presidente que concorre a uma reeleição nos Estados Unidos. A ação política, nesse caso representando um pensamento imperialista sobre o mundo, considera que assumir a possibilidade de destruição da Terra era um problema menor do que perder a eleição presidencial, algo bem próximo visto no Brasil. A população está exposta não apenas aos efeitos diretos das mudanças climáticas, que já são muito graves, mas, também, aos efeitos das lógicas da acumulação de capital. A política pública fica subordinada por interesses patrimonialistas das autoridades, que negam evidências da ciência e riscos ambientais, para não tomar medidas impopulares que mitiguem os impactos sobre a vida, acentuando o interesse imediato das pessoas que ocupam a agenda das ações governamentais. Diferentemente do cometa, que estaria por atingir a Terra na obra ficcional, o aquecimento global é real, já chegou e é visível a olho nu. Mas a população segue sendo atingida por ondas de calor letais, incêndios, secas, vendavais, tornados e inundações frequentes que devastam cidades. Mesmo o rio Amazonas, que forma a maior bacia hidrográfica do mundo junto com seus afluentes, mostrou-se vulnerável às ações antrópicas, como foi registrado na crise hídrica de 2023 no Brasil. E o Rio Grande do Sul, no outro extremo do mapa brasileiro, que sofre inundações de repetição desde o mesmo ano. O aquecimento global nos expõe a diversas vulnerabilidades, que não ocorrem do mesmo modo para todas as pessoas e em todos os lugares. As vulnerabilidades variam conforme as condições de vida desfavoráveis que impactam a saúde das populações. As consequências dessas vulnerabilidades não são apenas à saúde da população humana e não são apenas em curto prazo. Elas atingem todas as formas de vida e podem gerar mudanças drásticas e agravos a médio e longo prazos. Não está descartado o risco de inviabilidade da vida no planeta, como na obra ficcional. Mas a crise climática, da qual há pelo menos cinco décadas todos estamos sendo alertados sistematicamente, pode causar escassez de elementos essenciais à vida, como água e alimentos, em parte, pelo desmatamento e uso nocivo de agrotóxicos com empobrecimento e contaminação do solo. Como consequências, são gerados problemas de abastecimento hídrico, fome-desnutrição, recrudescimento de doenças transmitidas por mosquitos, como dengue e malária, consequentes de contato mais próximo com áreas florestais degradadas. Em 20 anos (1991 a 2010) mais de 96 milhões de pessoas foram, direta ou indiretamente, afetadas pelos desastres naturais, sendo que em determinados municípios e estados, a mesma população foi inúmeras vezes afetada e exposta a estes eventos ao longo desses anos. Atualmente, o Brasil, segundo a ONU, experimenta eventos climáticos de recordes históricos, como enchentes no Sul e calor extremo no Centro-Oeste e Sudeste. A crise hídrica no Amazonas não é apenas um sinal da crise climática, como também é a pior do tempo contemporâneo. A ocupação predatória do ambiente é a melhor explicação para as mudanças climáticas, conforme documentado e divulgado há algumas décadas.
Conclusão: A velocidade do cometa na obra ficcional ajuda-nos a pensar na urgência do desastre consequente à crise climática e, ao mesmo tempo, a necessidade de respostas. Com a crise climática, estamos aprendendo que todos os ecossistemas estão conectados e que o problema atinge a todos, sendo, portanto, responsabilidade de todos. O problema é global e somente haverá soluções envolvendo os diversos países, mas com ações locais. A redução dos riscos de desastres deve combinar um conjunto de políticas que previnam a ocorrência e limitem as consequências nas vidas de ordem planetária. Também para a produção de uma cultura de sustentabilidade e de responsabilidade ambiental, nos territórios e na formação profissional, sobretudo das ocupações que estão mais próximas à preservação da vida e da saúde. Com relação à saúde, o cuidado deve combinar fatores relacionados à urbanização, crescimento populacional, padrão de desenvolvimento, degradação ambiental e mudanças climáticas. Isso envolve e requer um conjunto de estratégias e, ainda que seja complexo, não há mais tempo para postergar. Justamente por ser complexo, deve superar o pensamento disciplinar e as práticas que alienam as pessoas das conexões que a produção da sua saúde envolve. Ainda mais, com recursos interdisciplinares e intersetoriais, deve mobilizar a capacidade de explicitar conexões entre a saúde e o ambiente. A produção de saúde deve mobilizar a ação de cuidado a mostrar, em todas as direções, os efeitos da degradação do ambiente na saúde e na vida. “Olhem para cima”, no contexto atual, parece ser uma convocação ética impostergável ao cuidado em saúde.