A importância do trabalho, na centralidade da vida das pessoas, ainda hoje sedimenta as bases para a inserção do indivíduo em um contexto social, uma vez que trabalhar desenvolve a ideia de pertencimento a um grupo, além de fazer parte dos processos de subjetivação de cada sujeito. Pesquisar sobre trabalho, com o recorte específico a um tipo de ofício, no caso, a saúde mental do trabalhador que atua em um Instituto Médico Legal (IML), consiste em percorrer um caminho repleto de estigmas e pontuado por um tabu, a morte. Esta, ainda que seja invariavelmente a maior, e talvez única certeza humana, habita um silêncio que também se encontra circunscrito no mundo do trabalho. Embora temas amplos e de suma importância para o ser humano, morte e trabalho, têm sido ainda pouco explorados e não configuram o plano principal do escopo prático e teórico de quem aborda pesquisas sobre trabalho no ramo da psicologia, muito menos com o apelo criterioso de estudar aqueles denominados de “trabalhadores da morte” (pessoas que lidam diretamente com a morte humana – legistas, coveiros, entre outros). O seguinte estudo tem como objetivo relatar a análise da organização de trabalho de trabalhadores de um IML através do aporte teórico da Psicodinâmica do Trabalho (PDT). Teoria criada pelo psiquiatra e psicanalista francês Christophe Dejours, desde a década de 50, a PDT baseia-se na ideia de centralidade e dualidade do trabalho. Este, passa a ser observado a partir de seus aspectos negativos e positivos, prazer e sofrimento, bem como sua influência na saúde mental do sujeito, pois busca compreender como os trabalhadores lidam e se defendem do sofrimento no real do trabalho e como traçam estratégias para não sucumbir ao adoecimento. A Psicodinâmica do trabalho afirma que os trabalhadores e trabalhadoras não são passivos dentro de uma organização do trabalho, mas são capazes, seja de forma individual ou coletiva, de agir sobre a realidade que os rodeiam para, com isso, desenvolverem mecanismos de defesa contra as violências vividas para, dessa forma, advir o prazer e a realização pessoal. Método do estudo: A abordagem metodológica utilizada para nortear os caminhos desta pesquisa insere-se no referencial da pesquisa qualitativa. Esta diz respeito a uma investigação da realidade que leva em conta aspectos da subjetividade vivida pelo sujeito dentro da sua realidade. A coleta dos dados foi obtida por meio da técnica da entrevista semiestruturada gravada (quando autorizada pelos participantes), observação das atividades dos trabalhadores e materiais obtidos em conversas informais e anotações em diário de campo. Por último foi realizada a análise dos dados coletados, com base na transcrição integral e literal do material obtido. O desconhecimento real da tarefa realizada pelos trabalhadores da morte abre margem para julgamentos que, não necessariamente, estão de acordo com a atividade desenvolvida. É somente através da elaboração dos sentidos e da vivência que o trabalhador poderá perceber as dificuldades e sofrimentos no qual está inserido e que suas defesas não permitem enxergar. Essa abertura possibilita aos sujeitos lutarem por sua emancipação. Onde existe a desconstrução das ideologias abre-se o espaço para uma ação reflexiva? e construção de novos sentidos para o trabalho. Resultados: No Instituto Médico Legal, as condicionantes de precariedade no trabalho, falta de reconhecimento e preconceito social podem aumentar as chances de desgaste psicológico e de um baixo sentido de realização profissional, pois os trabalhadores podem trazer para si as características indesejáveis do trabalho que realizam, ou seja, toda a repugnância que envolve o trabalhar como inerentes à sua própria pessoa, o que pode gerar uma experiência de degradação quanto à aceitação pessoal plena. Com isso, a estigmatização do sujeito é feita pela cristalização do olhar do outro em uma constante que se repete no próprio sujeito e assim o aprisiona na representação de desvalor. O descontentamento com esse espaço tem lugar marcante na fala dos trabalhadores. O odor característico ultrapassa as paredes da sala de necropsia e se espalha por todo ambiente do prédio o que, dependendo do tipo de cadáver, em decomposição, por exemplo, pode assumir as vias do suplicio e da impossibilidade de realizar suas atividades (ou tentar) com o cheiro exalando no ar. Esse desconforto marcante e a insatisfação deixam entrever, também, que parte dessa configuração poderia ser solucionada com medidas simples, com os exaustores (aparelho que remove mau cheiro de recintos fechados) funcionando. A fragilidade das acomodações recebe até de alguns funcionários entrevistados, amplos conhecedores das dificuldades de trabalho, sugestões simples para solucionar os problemas, desafios que com uma boa gestão poderiam ser superados. A prática de mostrar serviço por meio da estatística não deixa de representar o modelo de competência privada dentro do ambiente estatal. Aqui, a existência de um grande número de perícias realizadas, mais do que mostrar a incidência da violência, faz recair em cima do trabalhador, a cobrança pela produção. A excelência é cobrada, sem que sejam fornecidas as condições para tal prática. Na necropsia, a atividade gira em torno da figura do médico. A perícia em odontologia e antropologia configuram exame complementar. Assim, o trabalho precisa da autorização do médico para começar e da assinatura dele para terminar o que exprime, com clareza, que as atividades da perícia no morto giram em torno dos desígnios da palavra do médico. A divisão do trabalho impede que se acompanhe o desfecho de todos os casos. Quanto ao prazer no trabalho, os entrevistados informaram que a gratidão das famílias é fundamental para eles e apontam isso como uma forma de reconhecimento. Considerações finais: trabalhar cotidianamente com situações de violência e morte apresenta um grande potencial para adoecer os trabalhadores. Exposto aos mais variados riscos frente à importância da tarefa que realizam, na prática, eles não têm o suporte necessário para enfrentar à precariedade presente no seu trabalho. A dominação, mais elaborada, formaliza um acordo difícil de ser identificado, que segue permeado por contradição e controle. A sobrecarga de trabalho, a (im)possibilidade da realização do espaço de discussão, as formas de controle e as práticas de trapaça que subvertem, trapaça enquanto atividade ética e criativa que subverte a regra a prescrição para que o trabalho seja realizado, ficam mais difíceis de serem encontradas. O presente estudo corroborou essa ideia e procurou enfatizar a urgente necessidade de melhorias nas condições e organização de trabalho desses trabalhadores para que seja possível transformar, de maneira positiva, tal realidade.