Introdução: O processo de aprendizagem e a construção de conhecimento durante a formação da(o) discente de Medicina, assim como nos outros cursos na área da saúde, traça e percorre caminhos distintos. Para quem está diretamente envolvida(o), como docente, os passos são acompanhados de incertezas, desafios e necessidade de construções e reconstruções constantes para receber e acolher mentes e corações novos que chegam com vontade e desejos. Ainda que esteja no plano do desejo, que se projeta ou espera que a(o) discente desenvolva olhar singular para a pessoa/usuário/paciente/cliente que futuramente chegar diante dela(e) na busca de atendimento, de cuidado, por alguma necessidade, situação de vulnerabilidade ou fragilidade; esperando que essa pessoa tenha respeitada a complexidade da sua vida na dimensão física, simbólica e existencial; que o seu território vivo seja incluído no processo de cuidado, oferecer experiência que provoque reflexões e vivências nessa direção, constitui desafio. Objetivo: Esse trabalho tem como objetivo apresentar o relato de experiência vivido por uma docente e duas turmas de 13(treze) discentes do 2º período do curso de Medicina da UFF, na disciplina Trabalho de Campo Supervisionado (TCS 1B), no semestre de 2023.2 e 2024.1, durante o desenvolvimento do tema Território na Saúde. Metodologia: Relato de experiência. A estratégia escolhida para o desenvolvimento da atividade foi através do caminho da ludicidade, frente a pergunta provocação: O que pode um corpo? Resultado e Desenvolvimento: Tomamos como inspiração Espinosa, revisto por Deleuze, quanto ao olhar para o corpo, seus afetos e afecções, o que se pretendeu com a adoção do lúdico. Assim, foi solicitado que a turma de 13(treze) pessoas se dividisse em 3 grupos de 3 pessoas e 1 grupo de 4 pessoas. Cada grupo recebeu folha de papel pardo, lápis de cor, hidrocor e giz de cera, com um pedido: escolher entre cada grupo a pessoa que teria o corpo contornado e que a partir daquele momento todas e todos passariam a realizar a atividade em silêncio. Coletiva e individualmente, mas em silêncio. Quando em roda, abrimos para trocar e conversar sobre a experiência, alguns pontos apresentados por alunas e alunos chamam atenção, como:
“Eu amei o fato de não falar”
“Eu acho legal porque é contrastante. É muito contrastante sair de 4(quatro) horas de aula de anatomia na parte da manhã quando estávamos com um corpo de cadáver e a gente vem para essa aula que representa outras coisas, para falar de cuidado, desenhamos e pensamos em um corpo com outros elementos, com outras questões, com vida. Continuamos a falar do mesmo assunto. Foi bom, porque me ajudou a pensar outras coisas sobre o corpo”;
“Mostra o que um corpo pode, que tem diferentes estruturas e significados, que pode ver ou não ver e ao mesmo tempo não deixar de lado os corpos humanos e especialmente a singularidade de cada um”;
“Muita coisa não cabe dentro do corpo, muita coisa tem que transbordar. A gente é uma mistura de coisas...”;
“Quando uma pessoa tem alguma deficiência, a gente retira a pessoa. O corpo é tão abundante. O que está errado é o mundo...”
“O corpo também é território”;
“Sentir, agir, por para fora o que está dentro. O corpo é o único lugar que você pode chamar de casa”;
“Corpos diferentes, corpos que andam e não falam. Pessoas que se comunicam. Prazer e tabu. Envelhecer e se reinventar. O corpo pode se reinventar”;
“O corpo vai além do que o corpo pode acolher e compartilhar”;
“Um corpo pode muito mais e o tabu não deixa. Um corpo pode fazer um bebê. Um corpo pode ser companhia e acolhimento”;
“O corpo é tão abundante...o que está errado é o mundo”;
“O silêncio provocou outras conexões, como as diferenças e complementaridades”;
“Pensar a diferença entre ver e enxergar”;
“O corpo é frágil”;
“Eu pensei que tem diferentes corpos, assim como diferentes pessoas”
“Eu entendi o propósito de falar enquanto estava fazendo. Me incomoda muito não falar. Eu acho muito difícil não falar, mas se a gente fosse falar a gente ia ficar discutindo o que colocar, quem poderia ou não. Aí quando a gente ficou em silêncio a decisão era nossa de colocar ou não”
“Eu não tenho mais nada para falar, coloquei
“Eu pensei que tem pessoas que tem alguma limitação, que pode ser na fala, na audição, e essas pessoas também tem corpo”
“O corpo sente, o corpo resiste. Braços e pernas resistem, braços e pernas... Existindo você sente e sentindo você existe. Como um corpo pode ser diferente de significados, sensações...E pensar ”;
“A imagem não binária do corpo”
Considerações: Se ainda no século XXI as salas de aula, com frequência maior que a desejada, apresentam a mesma disposição estética e representação daquelas do século XIX ou XVIII, podemos nos fazer, constantemente, convite à reinvenção. A primeira intenção ao usar uma atividade lúdica, foi que cada pessoa, à sua maneira, no seu tempo, entrasse em contato com a sua criatividade sem crítica, ou mesmo com ela. Isso porque está no arcabouço, na viga de sustentação da proposta a articulação da construção do conhecimento com questões subjetivas do sujeito. Abrir espaço para o criativo em nós para então entrarmos em contato com as dimensões da outra pessoa, ou ainda abrir espaço para o criativo em nós para à partir daí olhar as diferentes camadas do território e poder chegar, atingir, alcançar o território vivo. Pensar território físico é fácil, está dado. Abrir espaço para acolher e compreender que existem outras camadas no campo do território da saúde e que todas são importantes na construção do processo de cuidado, pede novos olhares da pessoa em formação. Vivemos a necessidade de rever nossos processos no que tange a educação formal, e carregar de sentido o contato, o olhar, a construção de relações, a escuta, a tensão entre o coletivo e o individual, perceber e acolher a criatividade em si e no quanto ela pode ser utilizada no contato com o outro. Tudo isso pode ser um caminho que não é necessariamente novo, mas que podemos trazer à superfície. Propor que estudantes em silêncio, cada uma(a) à sua maneira, com as suas afecções, “construam” coletivamente um corpo e junto a esse mergulhar no simbólico, no físico, no existencial, e a partir do lúdico atravessar e acessar o território vivo ali representado, fez sentido para todas e todos presentes. O uso da autonomia e da criatividade por parte do(a) discente na elaboração da atividade devem ser destacados. O conceito território vivo não é óbvio e nem de pronto entendimento, uma vez que articula intensamente com a subjetividade que cada pessoa carrega consigo e processo de subjetivação, de produção de sujeitos. Uma turma de discentes do segundo período do curso de Medicina apresentar leitura detalhada, instigante, provocadora e profunda, que tomaram no uso do conceito de território na saúde e mais precisamente território vivo, para além do subjetivo, explicita e eleva o processo de aprendizagem para outros patamares e conexões. Os objetivos propostos foram alcançados.