A proposta desse estudo se relacionou aos desafios que, enquanto profissional de saúde e moradora do território, a autora experienciou em suas vivências de episódios de violência urbana durante o processo de trabalho em uma Unidade de Saúde da Família (USF) do município do Rio de Janeiro. A violência no Rio de Janeiro, segundo análise de diferentes indicadores de violência, segue uma tendência de progressão, gerando aumento da sensação de insegurança, recorrência de homicídios, vítimas de projétil de arma de fogo atingidas de forma aleatória, e os assaltos com “armas brancas” e roubo de celulares e carros, oriundo das desigualdades sociais e do descontrole na urbanização, incentivada pelos processos de favelização de periferias. Engajada no trabalho em uma USF periférica, foi conduzida a experiência narrada pela autora. Considerando como marco sua entrada na comissão de "Acesso Mais Seguro" (AMS) da unidade, o estudo teve por objetivo refletir sobre a produção de cuidado em um território localizado na zona norte, marcado pela violência e outras dinâmicas sociais complexas, com os contornos de uma experiência pessoal. A autora chama a atenção para a relevância social do AMS, visto que estimula a reflexão nas comunidades sobre a necessidade de não se naturalizarem os episódios de violência. Por outro lado, a autora pondera que a necessidade de existência do protocolo indica, ao menos, a aceitação tácita por parte da sociedade de que há rotineiramente e continuará a haver situações violentas que requerem frequentemente a interrupção dos serviços públicos de saúde no Rio, sobretudo os que atendem a população mais pobre da cidade. Neste contexto, foi utilizada a escrevivência como ferramenta metodológica fomentando assim a potência da narrativa como prática singular que possibilitou uma experiência reflexiva acerca das fronteiras sociais e territoriais do cotidiano de trabalho e registro diuturno da vivência pessoal como residente de um território periférico. A escrevivência marcadamente carregou, assim, uma dimensão ética ao propiciar que a autora assumisse o lugar de enunciação de um "eu" coletivo, de alguém que evocou, por meio de suas própria narrativa e voz, a história de um "nós" compartilhado. Neste trabalho, três cenas foram construídas para narrar o contexto da utilização da estratégia AMS no município do Rio de Janeiro. A primeira cena, intitulada “Inclusão no Acesso Mais Seguro” teve por objetivo narrar a entrada da autora na comissão de profissionais que compunham o acesso e a experiência de viver e trabalhar no mesmo território. A segunda cena, intitulada “As cores de uma classificação de segurança” abordou a experiência da decisão em conjunto de abertura e fechamento da USF. Neste contexto, também ensejou reflexões sobre as emoções que o conflito iminente e a conflagração da violência podem engatilhar. A terceira e última cena, intitulada “Um incidente no território: ninguém tem medo de tomar tiro?”, contém a narrativa sobre a experiência de conflito iminente e as repercussões na rotina e organização do processo de trabalho daqueles que fazem parte da "porta de entrada preferencial" do Sistema Único de Saúde (SUS). Imiscuída nos acordos interprofissionais para reorganização de fluxos e atendimentos, bem como no imperativo de continuidade do cuidado, que foi interrompido mediante um incidente, a autora narra por suas próprias lentes as emoções que emergem num processo de sensação de medo, culpa e responsabilidade. E compartilha reflexões que enunciam que as violências perpetradas pelo Estado, instauram uma lógica de que alguns corpos podem ou não viver, outros podem ou não morrer, e outros ainda merecem morrer. Baseada no pensamento de autores contemporâneos, enfoca a “precariedade” da vida, a ideia de que todos somos frágeis e, por um lado, dependemos de variáveis internas dos nossos corpos. Mas por outro lado, também dependemos de variáveis externas aos nossos corpos, de origem socioeconômica, etnico-racial, política, de gênero, sendo vulneráveis às questões ambientais e institucionais. Sob a proposta de registrar as possíveis relações entre emoções e práticas estatais, a autora teceu reflexões sobre os itinerários formativos que representam, também, a rotina exaustiva dos trabalhadores do SUS da região metropolitana de um município de grande porte que vive há décadas os conflitos entre as diferentes quadrilhas e facções nas favelas. A autora relata o papel de trabalhadores como "empreendedores morais" que orientavam o uso da plataforma e compunham o arranjo local da comissão AMS. Tais trabalhadores, ao se unirem, definiam um retrato da realidade momentânea e caminhavam para a tomada de decisão de "abrir" ou "fechar" a unidade de saúde. Estes atores teriam capacidade de guiar ações estratégicas para determinados eventos e situações, fazendo do uso deste dispositivo uma forma que possibilitou e possibilita a enunciação de aspectos relacionados à violência e que definem a rotina cotidianamente dos territórios onde o cuidado em saúde acontece. Numa narrativa implicada, entre os atores que fazem parte do movimento e a população que mora na localidade, se encontram os trabalhadores de saúde e se encontrava também a autora. Assumindo diferentes “crachás” ao encarnar a responsabilidade de abertura ou fechamento da USF com base nas leituras dos eventos cotidianos, buscava proteção para tantas vidas além da sua que residem em territórios afetados pela violência urbana. No "tremor das mãos e correria", residia uma gestão emocional necessária na rotina de trabalho, para equilibrar o ofício do cuidar com a missão de (sobre)viver. A experiência formativa de um Programa de Residência em Saúde da Família, formação chamada comumente de “padrão-ouro”, mostrou-se também “padrão pedra” como proposto mais recentemente por autor em Saúde Coletiva. Embora haja um modelo inspirador que compreenda a formação do SUS, no SUS e para o SUS, que se relaciona com a imersão da rotina de trabalho da APS, com carga horária teórico-prática robusta que agrega qualidade para a produção do cuidado em saúde, faz-se importante refletir que a construção dos processos de ensino-aprendizagem envolve protagonistas que necessitam do encontro e da experiência que o subjetivo oferece e que vai além de manuais, diretrizes e protocolos técnicos. Esta experiência existe num cenário atravessado por diferentes dinâmicas sociais que podem irromper no cotidiano de trabalho da APS e influenciar no repertório clínico e emocional dos trabalhadores e residentes. Por meio da elaboração desta escrevivência, a rotina de cuidado do "padrão pedra", que se circunscreveu a viver, sobreviver e escrever, se mostrando parte constituinte do processo formativo em Saúde da Família e explorada como dimensão útil do cuidar no contexto carioca.