Introdução
A Atenção Primária à Saúde (APS) é considerada o primeiro nível de atenção em saúde, sendo caracterizada por diferentes ações de saúde, individuais e coletivas, que envolvem promoção e proteção da saúde, prevenção de doenças, diagnóstico, tratamento, reabilitação, redução de danos e cuidados paliativos, com o objetivo de desenvolver atenção integral à saúde da população.
No ano de 1994, como forma de aprimorar a atenção à saúde no Sistema Único de Saúde (SUS), foi criado o Programa de Saúde da Família. Hoje entendido como Estratégia Saúde da Família, espera-se que este modelo fomente a reorganização e o fortalecimento da APS, sendo o nível preferencial de atenção inicial no sistema, priorizando ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, de forma integral e continuada.
Os profissionais que atuam nas equipes de Saúde da Família (eSF), bem como nos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF, hoje e-Multi) devem estar atentos à “complexidade das necessidades de saúde”, visando à atenção humanizada e qualificada que cada usuário ou família acompanhada demandem.
A complexidade das necessidades de saúde sob responsabilidade das eSF ficou bastante evidenciada no período mais crítico da pandemia de covid-19, quando o gerenciamento da crise sanitária no país provocou a descontinuidade do cuidado das doenças e agravos não transmissíveis, acrescido de alterações em saúde mental (SM). As medidas de distanciamento social, os sofrimentos decorrentes do adoecimento e das mortes de familiares e amigos demonstraram a importância de se reavaliar a assistência prestada aos usuários e, também, de retomar as ações de promoção e proteção à saúde.
Considerando que a SM está indissociada da saúde geral, é importante reconhecer que diversas queixas dos usuários da APS podem ter relação com questões emocionais e mentais.
Entendido como pré-condição de cidadania, o acesso aos serviços de saúde pressupõe o atendimento às necessidades de saúde de indivíduos e famílias, sendo inerente à organização nos diferentes níveis de atenção do SUS. Na APS, o acesso se refere à capacidade em operacionalizar o primeiro contato, ou seja, diz respeito à sua capacidade de oferecer respostas para novas demandas e recorrências de saúde em função da sua proximidade com os indivíduos e a comunidade, podendo ser visualizado em duas dimensões: acessibilidade e o uso/utilização dos serviços.
Diferentes fatores podem interferir no acesso aos serviços de saúde tais como: aspectos geográficos, arquitetônicos, de transporte, financeiros, entre outros. Entende-se que esses fatores podem se tornar barreiras ao acesso, impossibilitando que os serviços atendam de forma eficaz às necessidades de saúde em dado território. Diante disso, valoriza-se a importância da avaliação da organização dos serviços de saúde, de modo a fomentar o planejamento adequado da oferta. Considerando o exposto, este estudo tem como objetivo revisar a literatura sobre as barreiras ao acesso à SM no âmbito da APS.
Método
Tratou-se de revisão de literatura com enfoque qualitativo. O ponto de partida foi a definição da seguinte pergunta norteadora: quais as barreiras de acesso às ações e serviços de SM na APS, segundo a literatura científica?
Após a pergunta, passou-se à identificação dos termos descritores nos Descritores em Ciências da Saúde: “Atenção primária à saúde/Atenção primária”; “Saúde Mental”; “Barreiras de Acesso/Barreiras ao Acesso aos Cuidados de Saúde”. Na sequência, passou-se à recuperação de informações na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) por meio da seguinte estratégia de busca: “Atenção Primária à Saúde” AND “Saúde Mental”; “Atenção Primária à Saúde” AND “Barreiras de Acesso” AND “Saúde Mental”.
A pesquisa foi conduzida no mês de setembro de 2023, no formulário mais amplo, estabelecendo-se como critérios de inclusão: publicações disponíveis na íntegra e publicadas nos últimos 5 anos. Publicações repetidas foram excluídas.
Resultados e discussão
Das 267 publicações recuperadas na BVS, 168 foram excluídas por não se referirem ao tema em estudo. Das 99 publicações restantes, após a leitura dos títulos e resumos, 20 foram selecionadas para leitura na íntegra.
Esta revisão identificou que o acesso a serviços de SM na APS apresenta fragilidades, principalmente as barreiras funcionais e culturais. Dentre elas destacam-se: 1) Presença de estigma acerca do transtorno mental (TM): este mostrou-se frequente nos estudos, o que pode estar relacionado com a falta de entendimento do assunto; 2) Carência de formação no campo da SM, aspecto que foi interpretado como um empecilho para o fornecimento adequado de atendimentos e para aumentar a sensação de insegurança dos profissionais. Acredita-se que a falta de formação esteja relacionada com a prática corriqueira de encaminhar os pacientes para especialistas; 3) Assistência centrada na medicalização da vida: o uso de medicamentos controlados enquanto o principal recurso utilizado, associado a provável baixo conhecimento sobre alternativas. Verificou-se que o modelo biomédico ainda está fortemente associado aos serviços e que os usuários nem sempre são vistos de forma integral e humanizada. Contudo, alguns estudos combatem esse modelo e buscam atenção usuário-centrada, por meio de rodas de conversa, músicas e acolhimento. 4) Falta de suporte na gestão e a comunicação ineficaz entre os serviços de saúde: aspectos que prejudicam o acesso às ações e serviços de SM, como o processo de referência e contrarreferência burocratizado entre as equipes da APS e o serviço especializado, dificultando a continuidade do cuidado; 5) Limitadas condições estruturais, com descrição de serviços localizados em andar alto, sem elevadores e instabilidade do sistema e-SUS: estes dificultam a acessibilidade e impedem o acesso ao prontuário eletrônico; 6) Territórios com situação de violência, que tornam a livre circulação de pessoas um desafio; 7) Forma inadequada de atendimento: centrada na demanda espontânea e na distribuição das fichas: esta forma limita ainda mais o acolhimento e o vínculo com os usuários.
Mesmo diante das barreiras identificadas, é preciso salientar que as unidades da APS são pontos importantes para a atenção em SM, conforme previsto pela Portaria Nº 3.088/2011, que instituiu a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no SUS. O cuidado em SM neste nível é bastante estratégico e pode ser mais bem explorado diante dos processos de trabalho das eSF: como as ações de saúde são desenvolvidas em um território geograficamente conhecido, possibilitam conhecer histórias de vida, estabelecer parcerias com a comunidade e manejar aspectos dos contextos de vida, na lógica do apoio e da abordagem intersetorial.
Conclusão
Esta revisão identificou que o acesso às ações e serviços de SM na APS ainda é um desafio, visto que existem barreiras funcionais, econômicas, geográficas e culturais que dificultam a oferta do cuidado aos usuários com demandas de SM, vulnerabilizando ainda mais esta população. Torna-se necessário atuar frente à falta de formação profissional, ao estigma do TM, ao subfinanciamento do SUS, à medicalização do tratamento e à falta de integração e de matriciamento na rede de atenção à saúde.