Apresentação:
O gênero pode ser entendido como uma construção social, política e cultural das masculinidades e feminilidades. Refere-se ao conjunto de relações, papeis e atitudes que definem o que significa ser homem ou mulher (ou ainda nenhum dos dois) na sociedade. Em sua maioria, essas relações são desiguais, refletindo nas leis, políticas, práticas sociais, nas identidades e comportamentos das pessoas.Esta problemática, cheia de tabus e preconceitos, é um determinante importante de saúde e carrega muitas necessidades para a garantia e respeito incondicional à diversidade sexual e de gênero, acesso à saúde com equidade e integralidade da assistência. Desse modo, “gênero” está entre as linhas de destaque da Agenda de Prioridades de Pesquisa pelo Ministério da Saúde.
Considerando o papel crucial das políticas públicas na construção e aprimoramento das demandas da sociedade, é necessário a utilização do planejamento e programação em saúde. Assim, têm-se os Planos de Saúde como um instrumento central para definição e implementação de todas as iniciativas em cada esfera da gestão do SUS. Reconhecendo isso, percebeu-se como necessária a identificação da perspectiva de gênero nos Planos de Saúde do Estado do Rio Grande do Sul (RS) e do município de Santa Maria/RS, no intuito de analisar a abordagem de gênero, ações e/ou metas específicas ao combate das iniquidades na saúde.
Desenvolvimento do trabalho:
Estudo crítico-reflexivo que tem a pesquisa documental como recurso para investigação. Utilizou-se o Plano Estadual de Saúde do RS 2024-2027 e o Plano Municipal de Saúde de SM 2022-2025, ambos vigentes para o período de análise.
Pretendeu-se responder ao seguinte questionamento: “De que forma a perspectiva de gênero é incluída nos Planos de Saúde estadual e municipal como determinante importante para a saúde?” Para o tratamento das informações, buscou-se pelo termo gênero e seus análogos em todas as seções e posteriormente o fichamento com os pontos reflexivos, os quais possibilitaram uma visão panorâmica dos documentos e na construção deste estudo.
Resultados: A partir da análise do material e da discussão em grupo entre os autores, emergiram as seguintes categorias:
Invisibilidade da perspectiva de gênero nas notificações em saúde
Ao buscar gênero nos Planos de Saúde, percebeu-se mais correspondências no Plano Estadual do RS. Uma das abordagens mais presentes no Estadual, decorreu da dificuldade de encontrar dados sobre a população LGBTQIAP+ nos sítios oficiais.
Em vários pontos, como: notificação de violência segundo identidade de gênero/sexo no RS- o número de unidades de saúde que notificam a violência é pouco expressivo, pois há 5.627 serviços de saúde cadastrados no SINAN, destes, em 2022 apenas 1.417 realizaram notificações.
Também, a ausência do campo “identidade de gênero” nas notificações de HIV/aids no SINAN limita a possibilidade de análise do agravo em relação à população trans. Igualmente, no sistema OuvidorSUS, destaca-se a inexistência de campos para o preenchimento do nome social, orientação sexual e identidade de gênero. Também, o campo "sexo”, possui apenas as opções “masculino”, “feminino” e “não informado”, não abrangendo a variável intersexo.
Esta situação mascara as condições da discriminação e invisibilidade enfrentados por populações subalternizadas no país, nos levando a refletir sobre a precarização do atendimento às vítimas, da garantia de uma abordagem de saúde acolhedora e respeitosa e da ausência de horizontes de transformações via políticas públicas. É urgente a incorporação da categoria de gênero, no sentido de dar visibilidade a outra dimensão da desigualdade social, explicar situações e fenômenos que não teriam visibilidade sem este enfoque.
O Anuário de Segurança Pública (2023) sinaliza esta problemática, uma vez que refere a ausência de dados sobre a população LGBTQIAP+. Ressalta que a produção de dados não é uma mera estatística, uma vez que são fundamentais para os processos político-administrativos de resolução de problemas e para todo o ciclo das políticas públicas.
Metas para ações de saúde com olhar para o gênero
Quando da busca das metas dos referidos planos, destaca-se que no Estadual não há nenhuma correspondência específica para as questões de gênero/diversidade sexual, mostrando-se como uma lacuna/desafio a ser reconhecido. Ainda que o Estado não seja encarregado da prestação direta de ações/serviços de saúde, este deve atentar-se para atividades de planejamento e coordenação regional de todas as políticas, programas, ações e serviços de saúde.
O Plano Municipal de SM apresentou metas específicas, como : desenvolver e monitorar as ações em saúde para populações chave (LGBTQIAP+) e prioritárias na prevenção combinada do HIV e outras ISTs; monitorar e avaliar as ações em saúde voltadas para populações chave e prioritárias no âmbito da APS , como a LGBTQIAP+. O município de Santa Maria reconhece a importância de dar visibilidade a esta temática para a superação das desigualdades em busca do setor saúde deixar de ser uma barreira de acesso para os paradigmas de saúde/doença/cuidado. Importante também, para que os profissionais da saúde, tão imprescindíveis na formulação/implementação/monitoramento de políticas públicas, se reconheçam no público que atendem, respeitando a diversidade existente e prestando um cuidado baseado nos princípios do SUS.
Avanços/Desafios na atenção à saúde da população LGBTQIAP+
Outro fator que merece destaque e que de maneira positiva, tanto no Plano municipal quanto no estadual, mostraram-se como avanços no amparo à população LGBTQIAP+, são os serviços especializados de atendimento na transição de gênero.
No âmbito do estado do RS, nos últimos anos, observa-se a ampliação de pontos ambulatoriais de atenção às pessoas trans. Este é o caso do Ambulatório Transcender, em Santa Maria/RS, voltado para população LGBTTQI+ para esclarecimento, acompanhamento e encaminhamentos no âmbito individual, familiar, social e comunitário. No entanto, existem regiões desassistidas por estes serviços e na modalidade hospitalar do processo transexualizador, o RS está ainda mais aquém do desejado, pois possui somente um hospital habilitado.
Estes setores mostram-se como imprescindíveis para demandas que a literatura nos traz como influenciadoras das fragilidades desta população como: patologização da transexualidade, vulnerabilidade à automedicação, práticas de modificações corporais, entre outras necessidades de saúde. Esses avanços podem ser considerados um marco no processo de desconstrução da transfobia estrutural (que acarreta também adoecimento mental) na área da saúde, que deve ser pautada no acolhimento equânime e humanizado.
Apesar da ocupação de espaços de direito anteriormente negados, a discussão sobre as necessidades de saúde dessa população ainda segue padrões relativistas e excludentes. Ao investir em assistência ambulatorial não se atende a integralidade das necessidades de saúde de uma população vulnerabilizada. Tendo em vista o caráter resolutivista, o qual trata as consequências e não o indivíduo e seu meio. Além disso, a possibilidade de se apartar o cuidado desta população a um centro de referência, principalmente pelo fato que vários estudos têm mostrado o despreparo da rede de atenção básica para acolher esses indivíduos e suas necessidades, tira a centralidade da atenção básica.
Considerações finais
Considerando a importância dos Planos de Saúde na gestão efetiva do SUS, as perspectivas de gênero devem percorrer um grande caminho até a visibilidade como importante determinante social da saúde. Há diversos desafios, que se iniciam em estatísticas reais sobre a população LGBTQIAP+ para a elaboração/implementação de políticas públicas, metas/ações mais abrangentes e ampliação de serviços, no sentido de redimir as desigualdades e promover cidadania, qualidade de vida e saúde a esta população.