A pandemia da Covid-19 foi um marco na história contemporânea e como já é recorrente, quem mais perdeu e sofreu foi a população das periferias, o povo preto. Afinal, Sueli Carneiro (2011, p. 57) já nos alertava de que a “probreza tem cor no Brasil”. E as notícias, inicialmente tímidas, apontavam que nas periferias brasileiras, historicamente marcadas pelas opressões, o prejuízo no abastecimento de água, o provimento de álcool em gel a 70% e menos ainda, o distanciamento social, acarretariam maiores prejuízos.
A situação pandêmica revelou o racismo institucional para aqueles que ainda insistiam em declarar que no Brasil não existe racismo. A mídia, encharcada de imagens, escancarava as estações de trem lotadas majoritariamente com pessoas negras, aquelas que não tiveram e não tem o direito de não trabalhar. A maior proporção de trabalhadores pretos e pardos, o que refelete as desigualdades que foram constituídas historicamente, exerce atividades sem carteira de trabalho assinada (IBGE, 2019) portanto, não detêm direitos trabalhistas. Nos hospitais, a situação era de desespero. Com gestores despreparados para atuar em crises como a provocada pela pandemia, ficou mais evidente que os corpos negros eram aqueles que tardiamente receberiam o tratamento. Não é por acaso que a primeira morte anunciada de uma vítima de COVID-19 fosse uma mulher negra, trabalhadora doméstica.
O projeto Sarau Afro Gueto Urbano, movimento majoritariamente negro, idealizado por Mano Ox Rapper e ativista social, militante do movimento negro, educador social e popular, morador de Canoas/RS, já desenvolvia suas atividades culturais com um grupo de militantes do movimento negro de forma itinerante em Porto Alegre/RS e região metropolitana, desde 2017. Levava poesia e performances de protesto às comunidades, relembrando às pessoas as chagas que o racismo alimenta na nossa sociedade e ofertando o unguento para aliviar dores, diminuir as cicatrizes produzidas por tantas opressões, como nos diz Fernanda Felisberto (2020). Atividades de aquilombamento com muita consciência e fortalecimento racial, sempre estiveram presentes com as variadas temáticas, trilhando caminhos percorridos pelo amor, mas nunca esquecendo que nossas escolhas são políticas.
Com o distanciamento social surge a questão: como continuaríamos nos nutrindo e nos fortalecendo, observando que a principal vitíma dessa pandemia continuva sendo a população Negra? Em um contexto de um governo racista e negacionista, assistíamos dia após dia os corpos negros sem vida, vítimas do racismo, que tendo sempre sido tratado com cordialidade no Brasil, apresentava as contas com a carne negra mais barata do mercado (Soares, 2002). Mais do que nunca era preciso falar, gritar: Parem de nos matar! Assim, tivemos a ideia de criar o jornal eletrônico Afro Gueto Urbano. E nossa voz ecoou, como nos traz Conceição Evaristo (2021). Nossas vozes, historicamente caladas, ecoavam. Esse texto tem como objetivo geral apresentar, na forma de relato de experiência, as contribuições do jornal Afro Gueto Urbano que denunciavam o racismo, ofertando textos encharcados de poesia e ao mesmo tempo, que ofereciam conforto ao povo tão marcado pelas históricas opressões.
Participaram nessa caminhada, poetas de Caxias do Sul, de Florianópolis e de muitos municípios do Estado. O jornal teve uma ampla circulação e conseguimos que as edições chegassem até o Rio de Janeiro e São Paulo.
Quando completamos um ano de jornal, comemoramos em um encontro presencial, em uma tarde fria e ensolarada de outono, em uma associação de servidores públicos com a qual um dos participantes tinha contato. Além de nos conhecermos pessoalmente e confraternizarmos com artistas e amigos, tivemos a edição de abril de 2023 na forma impressa.
Considerações finais
Minha voz que se juntou com outras vozes e que todas somadas representaram nossa força e como fala a canção de Mauro Duarte e Paulo Pinheiro (1976): “Negro entoou/ Um canto de revolta pelos ares/ Do Quilombo dos Palmares/ Onde se refugiou”.
Nos Aquilombamos, nos fortalecemos! Nesses encontros de escritas que ao sagrarem, nos libertavam, nossos corações puderam receber conforto; e ecooamos consciências pelos ares pelas redes sociais. Consciência de que juntos formamos resistência, de que juntas/os/es, somos mais fortes.
Estar entre esses escritoras/es negras/os, possibilitou me conectar a minha essência de mulher negra e comecei a cultivar a necessidade de relatar nossas histórias. Lembrei-me de ter aprendido que nossos passos vêm de longe (Werneck, 2006). Nos momentos em que compartilhavam suas dores, suas lutas de perdas e descasos, me mostraram a responsabilidade que eu tinha de manter viva a lembrança de nossos ancestrais em mim e para as próximas gerações.
Que o sonho de liberdade do racismo, que um dia há de chegar, não nos cegue e dê abertura para repetições de opressão. Mas até que esse dia chegue precisamos ficar atentos, pois os mecanismos de opressão mudam, mas não se extinguem.
Palavras-chave: Jornal Afro Gueto; racismo; pandemia COVID-19;aquilombamento urbano.