No ano de 2020, o mundo sente a força implacável de um novo vírus agente causador de uma doença que se apresentava como síndrome respiratória. O novo coronavírus rapidamente encontra suas vítimas e em março do mesmo ano, a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2020) declara a pandemia de COVID-19. Entre omissões de ação e tentativas (nem sempre assertivas) dos gestores, passamos a vivenciar um modo de andar a vida que ficaria registrado para o resto de nossas vidas.
Uma das medidas adotadas pelo governo, como estratégia de prevenção à disseminação da doença, que fazia diariamente com que corpos deixassem de respirar, foi a adoção do isolamento social. Essa situação foi mantida durante algum meses, até que começamos a ter uma certa flexibilidade e uma possibilidade de encontros presenciais. Como medida de cuidado em relação à saúde mental, um grupo de amigas trocam estratégias de manter o equilíbrio emocional e decidem realizar um encontro. Nasce o jornal Mente Ativa, como um dos produtos desse encontro. Dessa maneira, o objetivo desse relato de experiência é narrar os acontecimentos produzidos por essa ideia jornalística criativa de entregar conforto, de forma poética, em tempos pandêmicos.
Metodologia
Em uma tarde de outono de 2020, três amigas elegem uma casa e se reúnem, em um café presencial. Entre desabafos e muitos papos sobre a saúde mental, entre organizações da casa e cultivo de jardins produtivos, leituras de estudo e lazer, as conversações brotavam de forma a deixar o ambiente sempre repleto de novidades. E muitas também as transitações nas redes sociais, uma das alternativas disponíveis para informação, além de caracterizar uma forma de entretenimento. E, sem dúvida, as redes sociais funcionaram como maneira de manter a conexão com as amigas e continuar realizando uma reflexão sobre a vida. Eis que surge uma ideia: Criamos o Jornal Mente Ativa, focado na escrita de mulheres. Em um primeiro momento, seriam convidadas mulheres do círculo de amigas (profissionais liberais com diversas atividades, psicóloga, nutricionista, terapeuta corporal, assistente social, artista plástica, professoras) que sabíamos ter escritos guardados ou potencial para escrita. Propomos textos com temáticas livres, sem a necessidade de essas serem escritoras e poetas. A intenção foi criar um veículo que desse voz aos vários sentimentos que perpassavam essas mulheres durante esse momento único na nossa história contemporânea.
Foi um ano de muita escrita profunda, sobre o momento da pandemia, nos vários estilos linguísticos (contos, poesia, narrativas, crônicas) cada uma no seu estilo, ou desenvolvendo um estilo que pudesse ainda não ter sido descoberto. A escrita versava sobre os muitos sentimentos que acompanhavam essas mulheres durante esse período. Muitas se descobriram escritoras e poetas, pois na infância ou na adolescência tiveram contato e gosto pela literatura, mas a vida adulta de responsabilidades lhes afastaram dessa escrita mais lúdica. Na sua maioria eram mães solos, negras, periféricas da região metropolitana e de Porto Alegre. Mulheres na sua plenitude produtiva e criativa, com histórias de resistência e persistências nas suas escolhas profissionais e de novas formas de famílias. Umas por descobertas e afinidades, outras por repetições de padrões sociais, as quais as colocaram como protagonistas de suas histórias. Muitas mulheres negras cujo protagonismo foi pela dor escancarada pelo racismo. Era uma estratégia poética adotada por essas profissionais, muitas invisibilizadas pelas práticas racistas, que retribuíam à sociedade suas histórias para incomodar os da casa grande e acordá-los de seus sonos injustos (Conceição Evaristo, 2017).
Criamos um layout minimalista potencializando a escrita. Tínhamos no grupo duas artistas plásticas, costumávamos mesclar os textos com desenhos ou pinturas dessas mulheres, que dava mais solidez e conexão para o jornal. As edições eram mensais, ofertadas de forma online, que saíam até o dia quinze de cada mês. Criamos um perfil no facebook e um grupo no whatssap para facilitar a comunicação. Era acertado que mais ou menos, dia 30 de cada mês a responsável pela edição gráfica comunicava o pedido dos textos. Um cuidado que tínhamos era respeitar o momento de cada mulher, lembrando de que o emocional (por estarmos em período pandêmico) poderia estar abalado e as diversas demandas de trabalho nos fizeram adotar que não havia uma obrigatoriedade de escrita, os textos vinham conforme a disposição dessas mulheres. Próximo do final do primeiro ano, nosso círculo de amigos já esperavam e nos cobravam a distribuição do jornal. Quando fechamos um ano, em 2021, fizemos o encontro do grupo na livraria Circula, localizada em Porto Alegre/RS. Era nossa comemoração de um ano de jornal, momento em que foi possível nos conhecermos pessoalmente, poder trocar abraços. Foi um lindo encontro, entre cafés com literatura, poesias e muito afeto.
Daquele encontro surgiram muitas ideias, saraus poéticos, coletâneas de mulheres, estendendo essas atividades em escolas e atividades na comunidade. Algumas dessas ideias se concretizaram, outras permaneceram no mundo das ideias. Havia muitas conversas de desabafo e fôlegos no WhatsApp, uma sendo fortaleza da outra. Realizamos alguns encontros online, que utilizávamos para pensar o planejamento do jornal, mas também eram momentos de lazer, encontro de amigas. Cada encontro era um brinde à vida com cafés, chás, vinho, cerveja ou água, pois foram muitas as estações internas e externas, climas quentes e frios, sentimentos de choros e risos, e claro, alguns conflitos, pois nem tudo são flores. Mas é fato que a escrita nos uniu e fortaleceu.
O jornal perdura até hoje com caráter de revista, com edições mais esparsas. Das três amigas idealizadoras, apenas uma permanece à frente do projeto. E o grupo se renovou durante esses quase quatro anos, assim como se renovaram as ideias, mas ainda permanece uma escrita prioritariamente de mulheres.
A Revista Mente Ativa está em 2024 com quase 4 anos de existência segue construindo narrativas de vivências, fortalecendo e compartilhando escritas que libertam e inspiram. São mulheres plurais, de diferentes estados do país, assertivas que hoje têm por objetivo: O despertar do empoderamento feminino. Entendemos como caminhos de reconstrução das bases sociopolíticas, ao mesmo tempo em que rompemos com o que está posto, compreendendo ser esta a formação de todas as vertentes opressoras que temos visto ao logo da história (Joice Berth, 2023)
Considerações finais
Participar do coletivo Mente Ativa foi realmente uma ferramenta importante naquele período de incertezas e perdas, ajudou a fortalecer amizades, fazer novas. E as produções de textos e o produto mensal, o jornal eletrônico, provocaram a consciência crítica da força da movimentação do indivíduo rumo ao empoderamento do coletivo conectado com a razão (Joice Berth, 2023).
O fortalecimento da saúde mental nesse período foi fundamental e nossos encontros proporcionavam esse cuidado para nós mesmas e cuidado que pudemos ofertar para outras pessoas pela entrega das edições do jornal.
Esses sentimentos foram consolidados com os muitos relatos que chegavam pelas redes sociais do jornal e redes sociais privadas, de que nossa escrita levava sentimentos que reverberavam nas pessoas que os liam, que nossa escrita provocava inquietações de forma leve, afetuosa e alegrava o coração em tempos tão árduos.