Apresentação: A região amazônica apresenta uma realidade particular diretamente influenciada pelos ciclos das águas. Suas populações costumam organizar-se pelas épocas de enchentes e vazantes dos rios, de modo que os arranjos de vida no que concerne às questões de saneamento básico, habitação, renda e trabalho, educação e saúde são impactados. Pode-se dizer que as implicações são observadas de maneira mais evidente nas populações rurais ribeirinhas, povos tradicionais que residem nas margens dos rios. No campo da Saúde Coletiva, especialmente quando se fala em planejamento e gestão, avalia-se a sazonalidade da subida e descida das águas para entender os modos de fazer saúde nestes territórios. A prevalência de determinadas doenças e o acesso aos serviços de saúde são pontos fundamentais a serem ponderados quando se objetiva garantir políticas de saúde adequadas às populações amazônicas. Durante as longas cheias, os ribeirinhos desenvolvem dinâmicas de adaptação de suas moradias, porém ainda sofrem com fatores de vulnerabilização: a ausência de solo disponível para sua plantação, além de inadequado saneamento básico. Já nos períodos de seca, o solo sem a fertilização das águas dificulta também sua produção agrícola seja ela de subsistência ou para comercialização. Quando se pensa nas equipes de saúde, o tempo e trajeto destes profissionais é de fato dependente da cheia e vazante, ademais, as populações costumam residir espaçadas, promovendo mais um obstáculo para levar saúde à zona rural. De encontro a isso tem-se também a disponibilidade de transporte adequado àqueles com comorbidades. Através da segunda edição da Política Nacional de Atenção Básica, visando dirimir iniquidades de acesso, criou-se a modalidade de Equipes de Saúde Ribeirinhas e Fluviais, contudo ainda existem nós críticos, especialmente atrelados ao nível dos rios que vão condicionar o tempo ou mesmo a possibilidade de translado. No Mestrado em Saúde Coletiva da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), há a proposta de realizar estudos voltados à realidade amazônica, onde os discentes são estimulados a imergir em campo através dos projetos de pesquisa e extensão, para que se possa entender, pensar e discorrer sobre práticas que promovam uma saúde de qualidade a estas populações. Neste contexto, propõe-se relatar a experiência do itinerário de uma mestranda do curso de Saúde Coletiva da UEA, em comunidade ribeirinha na cheia e na seca amazônica. Desenvolvimento do trabalho: As visitas ocorreram na Comunidade Nossa Senhora do Livramento, que fica localizada na região rural da cidade de Manaus (Amazonas), à margem direita do igarapé Tarumã Mirim, distando em linha reta 7 km da capital. E? uma das seis comunidades da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Tupé?, sendo a maior em densidade populacional. RDS é a área natural onde residem populações tradicionais, associando sua existência à sustentabilidade de uso dos recursos naturais. A RDS do Tupé fica situada no Corredor Central da Amazônia, na Bacia do Rio Negro e pertence administrativamente à zona rural da cidade de Manaus. Conforme descrito na sua portaria de criação, apresenta o objetivo de preservar a natureza e assegurar meios para melhoria e qualidade de vida, bem como a exploração dos recursos naturais das populações tradicionais, valorizando também seus conhecimentos. Nota-se que na Amazônia, em geral, há dois períodos, que ditados pela chuva são chamados de: inverno (chuvoso) e verão (seco). Os períodos de cheia e seca que vêm das fases com mais ou menos chuva, respectivamente, possibilitam maneiras próprias de vida e cuidado nesse território. Assim, as visitas ocorreram no período de junho de 2023 a maio de 2024, com o propósito de conhecer a comunidade, bem como estabelecer vínculo com seus residentes previamente ao início da aplicação da pesquisa científica objeto da dissertação da mestranda. Em 08 de junho de 2023, o rio encontrava-se em seu nível dito normal, de modo que a viagem levou cerca de 25 minutos desde o porto Marina do Davi até a comunidade, não possuindo variações em seu trajeto. O porto fica localizado ao final da estrada da Ponta Negra, dele saem os barcos com motor acoplado (voadeira) de hora em hora ou conforme a lotação completa da embarcação. No mesmo barco é realizada toda a viagem até o destino final, neste caso, o porto principal da Comunidade Nossa Senhora do Livramento. A ida e volta custa um total de vinte e quatro reais. Já na visita realizada em 28 de outubro do mesmo ano, ocorria a maior queda registrada nos níveis dos rios da Amazônia, provavelmente relacionada com os fenômenos do El Niño e La Niña que modificaram a frequência e proporção das chuvas na região. Afirma-se que foi a maior estiagem até o presente momento. Isto acarretou um itinerário diferente, onde se precisava caminhar cerca de 15 minutos por um percurso adaptado até um porto flutuante improvisado pela mesma cooperativa que presta o serviço de transporte às comunidades. Chegando neste flutuante, onde o nível de água era suficiente para a rota de embarcações menores que as utilizadas na visita anterior, chamadas de rabeta, estas levam os passageiros até onde o nível do rio permite adentrar, levando em média 30 minutos. A partir deste ponto de parada troca-se de embarcação por uma ainda menor, a canoa, que leva aproximadamente mais 10 minutos para chegar na imediação da comunidade. Ao desembarcar, caminha-se 15 minutos até sua sede, totalizando um tempo de 70 minutos ao destino. O valor cobrado permanece o mesmo, com a diferença de que é repassado na ida para quem manobra a rabeta dez reais e dois reais para o serviço da canoa, e igualmente ambos na volta. Em se tratando do acolhimento e vínculo, a mestranda foi recebida junto ao grupo de pesquisa pela liderança comunitária, que apresentou os pontos principais da sede (rádio local, posto de polícia, unidade básica de saúde, centro comunitário, escola e mercadinhos). Foram possibilitadas novas visitas e participação em ações sociais, festas locais e reunião da associação comunitária. A equipe sempre foi recebida com bastante entusiasmo na comunidade, que por sua vez, mostra-se amplamente adepta às práticas e pesquisas a serem desenvolvidas no local. Resultados: O itinerário varia com relação ao percurso, tempo e transporte, conforme o período em que se encontra o nível dos rios na região Amazônica. Estima-se 25 minutos para o nível das águas adequado ao trajeto da embarcação do tipo voadeira e 70 minutos quando há a estiagem, utilizando-se para a viagem dois tipos de transporte, rabeta e canoa. Este ir e vir demanda a capacidade de pagamento, bem como, no caso da época de seca, a possibilidade de caminhada a pé, tanto para a chegada ao porto improvisado, quanto à sede da comunidade. Tais pontos nos tomam olhar mais atento às questões de acesso e acessibilidade no que concerne ao fazer pesquisa e planejar saúde nesta região. Considerações finais: A experiência vivida como mestranda em Saúde Coletiva demonstra a necessidade de avaliação das especificidades da região Amazônica sobre seus desafios e potencialidades. Realizar pesquisas neste território líquido requer muito mais do que apenas explanar sobre os aspectos geográficos desta terra, mas também o engajamento de se aventurar em águas rasas e profundas, para só então conseguir dimensionar as realidades enfrentadas pelos povos ribeirinhos que aqui residem. Desta forma, é possível planejar ações e práticas de saúde adequadas à localidade e que verdadeiramente valorizem as populações tradicionais.