Este trabalho propõe uma reflexão sobre a experiência de grupos de saúde mental em uma Unidade Básica de Saúde em Belém do Pará. Trabalhando com o dispositivo do grupo terapêutico (GT) com distintos coletivos, uma temática em especial percorreu a construção comum desses encontros: o amor. Sendo assim, destacaremos as narrativas do amor como forma de apresentar a experiência e, na produção de uma dobra, tecer reflexões sobre o próprio dispositivo de cuidado desenvolvido.
O grupo terapêutico (GT) é um dispositivo em saúde mental coletiva importante para criarmos junto ao território novas possibilidades de cuidado, que abarquem a complexidade da vida em suas imensuráveis manifestações. Não obstante, passado mais de uma década da criação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) em território nacional, segue sendo um desafio sua implementação, principalmente no nível primário, visto a necessária mudança de paradigma que reconfigura seu objeto no campo de atuação. O objeto deixa de ser a doença meramente isolada e passa a compor uma articulação do padecimento humano com a própria dinâmica da vida. Para isso, um diálogo transdisciplinar é fundamental na construção de ferramentas teórico-conceituais e assistenciais, tecnologias leve-duras e leves, que propiciem criar uma tessitura no cuidado transversalizado pelas singularidades e que se movimentem nessa troca de saberes e experiências das pessoas implicadas e seus territórios existenciais. A partir da micropolítica do GT, buscamos cultivar leituras decoloniais sobre várias temáticas escolhidas pelxs participantes. Uma maneira de agregar um discurso instituinte se dá pelo fomento de questionarmos os significantes instituídos culturalmente como verdades absolutas, que perpassam as narrativas de adoecimento dessas pessoas, sejam eles circunscritos no campo científico ou no senso comum. Aqui apresentamos alguns caminhos e a importância de uma postura dialógica e aberta aos saberes do território, no caso a Amazônia, como uma possibilidade de repensarmos, desconstruirmos e reconstruirmos outros modos que compreendam as múltiplas dinâmicas da vida, nos quais conversamos com a perspectiva da esquizoanálise, da reabilitação basagliana anti-institucional e do bem-viver. A esquizoanálise parte da filosofia da diferença e do pensamento nômade, que não tolera a sujeição do desejo por sustentar uma forma sutil de escravidão, por isso busca cultivar uma responsabilidade ética com nossa potência de vida, e não moral. Sobre a reabilitação basagliana, resumidamente, destacamos que a produção desse trabalho junto aos GTs, põe em movimento um olhar para as demandas cotidianas e suas exigências no âmbito das ações políticas e éticas, sem uma finalidade específica como forma de controle, mas sim associando a noção de grupo-devir nessa produção coletiva do cuidado. Também, nessa composição das ferramentas conceituais, a noção de bem-viver como análise crítica do modo de vida capitalista, auxilia em movimentarmos e somarmos reflexões que fomentem ações concretas na saúde coletiva para além de modelos hegemônicos.
Atualmente temos em atividade quatro GTs: jovens, mulheres, homens e pessoas idosas. Como parte importante do funcionamento desses grupos, trabalhamos cada encontro a partir de um tema escolhido e pactuado coletivamente. Em todos os grupos terapêuticos a temática do amor foi escolhida e muito explorada, nos quais as conversas aconteceram em mais de um encontro, desdobrando temas, como ciúmes, culpa, sexualidade, entre outros. Nas discussões, partimos do princípio de como as noções sobre o amor estimuladas por filmes, músicas, novelas e poesias, contribuíram para os diversos ideais estabelecidos nas relações, sejam familiares, de amizade e, sobretudo, amorosas. Observamos como a perspectiva do romantismo foi a base para as nossas vivências, como ideal de completude, exclusividade, durabilidade, expectativas de demonstrações de afetos vistos nos filmes e novelas, entre outros. Questionamos a perspectiva colonial quanto aos “cortes” de gênero e suas influências nos relacionamentos, no quanto o machismo nas relações heteroafetivas foi sustentado pela ideia de que o gênero feminino era quem tinha o papel de se doar, cuidar, esperar, renunciar em prol de uma masculinidade na qual tudo estava disponível. Vimos que para os povos originários essa construção se dava de modo diferente, relatando as experiências dos guaranis que foram muito subjugados pelos jesuítas, pois não concebiam relacionamentos exclusivos e nem o assujeitamento das mulheres. Assim, problematizamos a temática do amor somando várias concepções, inclusive culturais, para potencializarmos nossos olhares mediante as nossas experiências e percebermos as forças que nos determinam nesse sistema capitalista-colonial-machista-racista, para assim desconstruirmos esses ideais que em nada dão conta de uma produção ética da vida. Nesse debate, ressignificamos maneiras de conceber o amor sem fecharmos num conceito, para não cairmos no engodo de trocarmos um ideal pelo outro. Uma análise crítica sobre nossa cultura ocidental capitalista, que contaminou as relações amorosas numa lógica de mercadoria: posse, investimento e lucro. Por isso, tratar dessas mazelas requer circular a palavra, praticar a escuta ativa, reconhecer e reconsiderar esses processos instituídos nas relações íntimas que rebaixam sua potência de vida, sufocando o desejo por meio de camadas e mais camadas de valores externos, que não dão conta de uma experiência amorosa conforme sua singularidade, provocando uma espécie de alienação sobre o processo de padecimento perante essas questões. Com isso, nos GTs acolhemos diversas narrativas amorosas, cada uma com suas marcas, dificuldades, ideais cultivados semelhantes, maneiras de comparecer nas relações, em que muitos se perceberam repetindo o que apenas era dito sem ser questionado, em destaque para as falas do GT de mulheres, que reproduziram muito a ideia de ser aquela que se doava por completo e que, além de esquecer de si, não havia espaço para outros modos de cuidado que não fossem semelhantes aos seus. Territorializavam seus corpos a partir dessa mônada totalitária. No GT jovem exploramos as concepções de amor que nascem a partir dos debates sobre nossa complexa sexualidade, que não se restringe a uma relação heteroafetiva, bem como sobre as discussões da não-monogamia, campo fértil para dialogarmos os processos colonizadores e capitalísticos que subjugaram as multiplicidades das relações socioculturais a partir de padrões dominantes e moralistas.
Percebemos que ao falar sobre amor, reconfiguramos outras maneiras de encará-lo, desterritorializando o amor instituído e reterritorializando um amor instituinte. Enriquecemo-nos no coletivo por meio dos relatos das experiências e considerações práticas, nas quais não se restringem a percebê-lo apenas como um sentimento, mas que os atos são cruciais em observarmos os efeitos que contribuem para sustentar relações saudáveis, desvinculando toda forma de abuso como motivo. Ou seja, nos GTs houve a possibilidade de reabilitar as noções de amor por meio de vários olhares, incluindo concepções ancestrais, somando uma análise anticapitalista, antimachista, antihomofóbica, antietarista, anticolonial e antirracista, propiciando um agenciamento ético que também implicava as pessoas do grupo em suas cumplicidades e devires ativos.