Racializando o debate no Sistema Único de Saúde: relações raciais ou relações étnico-raciais?

  • Author
  • Marília Meneghetti Bruhn
  • Co-authors
  • Raquel Hack da Rosa , Lilian Rodrigues da Cruz , Fernanda Spanier Amador
  • Abstract
  • Os indicadores de saúde divulgados pelo Ministério da Saúde, quando relacionados com as características socioeconômicas, demonstram a importante relação entre saúde, seus determinantes sociais e a organização do Sistema Único de Saúde (SUS). Este trabalho tem como objetivo discutir a categorização em raça/cor ou em raça/etnia como determinantes sociais em saúde a partir da análise de atos normativos do SUS e de revisão narrativa de literatura sobre relações raciais e relações étnico-raciais. Os atos normativos analisados foram a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) e a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASP). Também foi utilizado na análise a publicação do Conselho Federal de Psicologia (CFP): “Relações raciais: referências técnicas para a atuação de psicólogas(os)”. Desde 2009, com o lançamento da PNSIPN, há o reconhecimento do racismo, das desigualdades étnico-raciais e do racismo institucional como determinantes sociais das condições de saúde, sendo fundamental considerá-los na formulação de políticas para garantir a equidade na saúde destas populações. A inclusão do quesito raça/cor e etnia nos registros administrativos de saúde é um dos pontos centrais do PNSIPN para que sejam produzidos dados que orientem as políticas do SUS. A portaria nº 344, de 1º de fevereiro 2017 determina que o preenchimento do campo denominado raça/cor é obrigatório aos profissionais atuantes nos serviços de saúde, de forma a respeitar o critério de autodeclaração do usuário, dentro dos padrões utilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que categoriza a população brasileira como branca, preta, amarela, parda ou indígena, sendo que pretos e pardos são considerados população negra. Contudo, os conceitos de raça e etnia não são sinônimos e a forma como eles são homogeneizados em formulários inviabiliza as disputas ético-políticas pelo uso de de diferentes termos que têm impacto no atendimento e garantia de direitos de minorias sociais. Silvio Almeida (2019) destaca que o conceito de raça está atrelado a dois registros diferentes que se entrecruzam: como característica biológica - atribuída a cor da pele e traços negróides - ou como característica étnico-cultural - associada à origem geográfica, à religião, à língua ou outros costumes. Assim, o racismo pode assumir diferentes configurações, podendo estar relacionado com características fenotípicas ou produção cultural de etnicidade (Schucman, 2012). As políticas de branqueamento entrelaçadas no contexto de políticas públicas e ideologia de embranquecimento da população, tais como a vinda de imigrantes italianos e alemães no final do século XIX e início do século XX, e o Mito da Democracia Racial contribuíram para o fortalecimento do racismo ser associado exclusivamente à cor de pele, deixando. O racismo no Brasil segundo essa perspectiva seria fundamentado em uma pigmentocracia, que define que as pessoas são hierarquizadas em grupos sociais de acordo com a sua pigmentação de pele (Góes, 2022). A perpetuação do racismo pela violência direcionada ao corpo considerado negro e sua ancendencia, serve de referência para definição de categorias raça/cor pelo IBGE. As bancas de heteroidentificação têm utilizado, para validar, a inscrição por cotas raciais em concursos, critérios fenotípicos, desconsiderando aspectos da identidade sociocultural. Para o CFP, a discriminação étnica é um desdobramento da discriminação racial e não há como separar “etnia branca”, “etnia indígena” ou “etnia negra” porque não há nenhuma construção sociocultural que unifique o grupo dos brancos, nem o grupo dos negros ou dos indígenas. Na visão do CFP, “não há discriminação etnica que não seja discriminação racial” p. 29.  Diferentemente da perspectiva de relações raciais baseadas exclusivamente no fenotipo negroíde, para os indígenas, de acordo com Geni Nuñez Longhini (2023), a identidade étnica é central para pensar a luta antirracista visto que o que define se uma pessoa é de identidade indígena é se ela faz parte de determinado povo. Assim, para a população indígena, há indígenas de todos os tons de pele e o que define o racismo étnico-racial é o pertencimento a um povo originário brasileiro. Para essa população, o conceito de relações étnico-raciais, ao invés de relações raciais é estratégico para evitar o etnocídio. Enquanto a maioria da população negra no Brasil sofre um apagamento da identidade étnica - não sabem de qual etnia da África se originaram os seus antepassados devido à escravização e a queima de registro históricos no período pós-abolição - os indígenas ainda conseguem determinar a sua etnia. Não obstante, o entendimento étnico africano pode suscitar uma representação única, que desconsidera a pluralidade étnica de afrodescentes. Bem como, fazer um apagamento dos processos de construções identitárias afrodiaspóricas corroborando para a manutenção de estereótipos próprios  do racismo brasileiro. Por conseguinte,  simplesmente classificar todos os povos indígenas em uma única categoria de raça/cor apaga toda a construção cultural de cada povo. Esse apagamento tem impacto na implementação de políticas públicas de saúde, afinal cada povo tem saberes tradicionais próprios e práticas de cuidados em saúde diferentes. Logo, tão importante quanto considerar as categorias de raça/cor, principalmente quando nos referimos a população indigena, é fundamental levar em conta a etnia de qual a pessoa faz parte para a humanização do seu atendimento de acordo com o modelo biopsicossocial do SUS. Em 2010, com a responsabilidade de executar a Política Nacional de Atenção à Saúde da População Indígena, é criada a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), vinculada ao Ministério da Saúde e contando com 52% de profissionais indígenas para atenderem as especificidades epidemiológicas e socioculturais dos povos, que vai para além das categorias raça/cor do IBGE. Entretanto, em termos quantitativos, a população negra continua a ser o principal recorte populacional que depende exclusivamente do SUS - aproximadamente 70% da população usuária do Sistema Único de Saúde é de pessoas pretas ou pardas. Enquanto a porcentagem de população indígena não chega a 1% das pessoas usuárias do SUS. Assim, os debates continuam em como operacionalizar um sistema universal de saúde que seja equânime sendo que a visibilização das diferenças entre relações raciais e relações étnico-raciais é fundamental para que as discussões consigam produzir políticas assertivas antirracistas. Os registros e indicadores de saúde necessitam abranger a diversidade que reflete a população para que possamos atuar numa perspectiva de saúde integral.

  • Keywords
  • Relações raciais, Relações étnico-raciais, Etnia, Raça
  • Subject Area
  • EIXO 6 – Direito à Saúde e Relações Étnico-Raciais, de Classe, Gênero e Sexualidade
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