O presente trabalho foi concebido a partir da afirmação de Franco Basaglia, proclamada na I Conferência de Saúde Mental de 1975, considerada pelos autores da pesquisa como uma provocação que segue atual e que destacamos a seguir: é a de que nós inventamos a expressão da sintomatologia das doenças a partir da forma com que a enxergamos e adotamos as medidas para enfrentá-la. Relacionamos, aqui, com os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Tratando-se de uma proposta e prática cotidiana de um recurso de cuidado em liberdade, articulados ao Sistema Único de Saúde (SUS) e conquistado a partir da Reforma Psiquiátrica (Lei nº 10.216/2001), a afirmação de Basaglia pode levar a dois principais problemas: (I) quais são as concepções tomadas como verdades que regem o saber biomédico e quais as suas implicações neste campo de tratamento a longo prazo, em equipe multidisciplinar? (II) tomando como verdadeira a afirmação de Basaglia, qual função o Psicólogo inserido neste contexto deve assumir? A presente pesquisa utiliza-se de uma metodologia qualitativa baseada em uma revisão bibliográfica de autores como Michel Foucault, Franco Basaglia e Antonio Lancetti. Recorrendo a esses autores, fazemos interlocuções que dizem respeito à Saúde Mental e ao contexto histórico do saber biomédico a partir do que se espera do tratamento a longo prazo no CAPS. Os CAPS fazem parte da Rede de Atenção Psicossocial, a RAPS, e são serviços de saúde mental que tem o dever de promover às pessoas em intenso e persistente sofrimento psíquico a autonomia e reinserção social de maneira a ser desenvolvida uma boa qualidade de vida. Com isso, espera-se que seus profissionais (nas diversas áreas que lá se fazem presentes como a Psicologia, Medicina, Enfermagem, Terapia Ocupacional, dentre outras) utilizem-se de uma perspectiva crítica que considere as influências de fatores sociais, culturais e históricos como mecanismos que subjetivam o usuário. Até que ponto tal prática é possível? A civilização ocidental desfruta e destaca momentos marcantes no que diz respeito à maneira de se entender e estar no mundo. Se até o século XVIII o caráter religioso regia a vida através da espera pela salvação após a morte, o avanço da Medicina, no século XVIII, produziu maneiras de manipular o corpo para além da fantasia, regendo não mais a morte, mas a vida em si. Neste momento, com o conceito de loucura sendo encarcerado pela Psiquiatria, ressignificando-o como doença, inicia-se um processo de classificação de sintomatologias e desenvolvimento de diagnósticos tratados como verdades absolutas, objetivamente analisadas. Assim, qualquer característica singular e cotidiana que exponha uma diferença atribuída à subjetividade é vista a partir de sintomas para doenças que supostamente explicam o transtorno de pessoas em sofrimento psíquico. Nesse contexto, a contribuição foucaultiana sobre o conceito de biopoder torna-se um operador conceitual que abre algumas perspectivas de compreensão, dada a sua apreensão de se governar a vida. Em um primeiro momento, o biopoder consiste em disciplinar os corpos de maneira a se tornarem força produtiva. Posteriormente, na metade do século XVIII, Foucault explicita este conceito como biopolítica e afirma que as expressões cotidianas coletivas abrangendo saúde, natalidade e longevidade são apreendidas principalmente pelos saberes da Medicina, Psiquiatria e Biologia em sua forma de interpretação e ação, transformando e afetando significativamente, então, as experiências singulares. Assim, instituições disciplinares dão forma e ditam a vida: a ciência impõe o sexo como reprodução, a medicalização como salvação. A intervenção médica prescreve e controla como o corpo deve ser enxergado e a vida planejada. As verdades são catalogadas. Com isso, retornando à Basaglia, será possível que, mesma após a Reforma Psiquiátrica, o saber soberano da Psiquiatria ainda não aprisiona significativamente a possibilidade de produção de sujeito do usuário em tratamento nos CAPS, mas de maneira oculta, em prol de uma verdade que almeja a cura como oposta ao ser louco? Com a impossibilidade teórica definitiva de uma resposta como essa, reflete-se a respeito de que, se para gerar saúde mental é necessário combater o hospício, como afirma Lancetti, o Psicólogo, como sujeito político, deve assumir o dever de inserir os pacientes que já sofrem um histórico de exclusão e inferiorização de movê-los do exílio à cidadania. Ou seja, de fazê-los políticos também. De se apropriar de formas próprias de se estar no mundo. É possível, para além de reconstruir as partes e juntar os cacos de maneira territorial, que isso seja feito em movimento, de maneira a se fazer existir com o usuário em vários espaços. Isso daria subsídio para que, ocupando a cidade, permita a ele descobrir novas verdades para si mesmo, não tão objetivas ou definitivas, assumindo o caráter diverso e transitório das verdades que se descobre, como o tempo e a permanência sobre si. Construíram-se, com isso, elementos de sua subjetividade que concedessem alternativas na maneira de relacionar-se consigo e, logo, com o outro. Foucault afirma que, no século XVIII, o saber biomédico coloca o sujeito apenas como um complemento exterior da doença; os intervalos da natureza atemporais dos sintomas da doença dão norte à bússola da cura. É levado em conta vicissitudes do interior do corpo apenas quando assim forem melhor classificados os sintomas que acompanham o diagnóstico e assim posto, descrito num quadro plano. Quadro, este, que os pintores, segundo ele, utilizam-se de outra forma: tomando o cuidado em um retrato para que todos os detalhes do rosto do sujeito sejam pintados na tela. Assim, espera-se que o papel do Psicólogo seja o de permitir, a longo prazo, que seja posto à disposição diferentes cores para que o usuário possa demarcar por si mesmo outros elementos de sua personalidade supõe que cada detalhe da sua pintura - isto é, cada aspecto que compõe sua vida, como social, laboral, político, em essência - seja delineado com paciência, presença no tempo, cuidado e delicadeza. Mostrando-se, assim, ao usuário, que é possível pintar e assim construir com ele outros recursos para lidar com a doença que proporcione uma outra maneira de enxergá-lo como ser íntegro e complexo. Dizemos isso com base na afirmação de que o trabalho do Psicólogo no CAPS de cuidado em liberdade deve respeitar a existência e a forma de cada um/uma ser e estar no mundo a partir da escuta de suas dores, sofrimentos, desejos, segredos, planos, saberes, alegrias. Logo, considera-se pertinente que sejam desnaturalizadas concepções clínicas e questionadas as noções básicas da própria equipe multiprofissional a fim de que sejam produzidos recursos mais amplos no sentido de auxiliar o usuário na sua integração na sociedade e desenvolvimento da autonomia. Dito isso, há de suscitar ao usuário o próprio saber e não-saber como norteador da própria vida de maneira a produzir ainda mais complexidade e, por quê não, incertezas? Esperamos, portanto, que possam ser desenvolvidos e inventados caminhos para que sejam desenhadas verdades sem compromissos com o seu domínio.