GUARDIÃS DA VIDA: NARRATIVA DE UMA PERSONAGEM POMERANA DO CAMPO

  • Author
  • Camila Lampier Lutzke
  • Co-authors
  • Maria Helena Monteiro de Barros Miotto , Maria Angelica Carvalho Andrade
  • Abstract
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    Apresentação: Os pomeranos, que chegaram ao Brasil a partir de meados do século XIX, são reconhecidos como parte dos Povos e Comunidades Tradicionais do país. Ainda hoje, graças ao isolamento geográfico, ao forte senso de comunidade e às barreiras linguísticas, preservam um componente cultural rico e muito forte entre seus descendentes. A mulher pomerana é um importante elemento nesse contexto, reunindo características que a tornam pilar dessa sociedade. O agridoce cotidiano dessas mulheres ainda é território não descoberto para muitos. Mesmo enquanto pesquisadoras, imersas na cultura pomerana, suas reflexões e reverberações, muitas vezes predomina um distanciamento das vivências dessa população, em contrapartida ao conhecimento que se adquire.  Assim, buscando transcender a impersonalidade epidemiológica, apresenta-se a mulher pomerana, seus atravessamentos, circuitos de afetos e sua história, através de uma personagem conceitual, que reúne em si tantas mulheres que em coro podem ser ouvidas.

    Desenvolvimento do trabalho: Para compreender plenamente essas experiências, que englobam significados, sentidos, motivos, crenças e valores, é essencial realizar uma análise que leve em conta a complexidade das relações, dos processos e dos fenômenos relacionados às questões de gênero e cultura. Dessa forma, emprega-se o desenvolvimento de uma personagem conceitual como recurso, cuja função é expressar os territórios, promover o deslocamento e a reafirmação do pensamento. São intelectuais, com voz ativa, encarnam conceitos, ideias e abstrações.

    Resultados: O trabalho apresenta uma abordagem poética sobre a experiência e identidade de uma mulher pomerana. Recorrendo à linguagem metafórica e sensorial, a personagem descreve sua relação com o campo, a cultura e a comunidade. Por meio da narrativa da personagem, são explorados temas como identidade cultural, ancestralidade, trabalho árduo e resiliência. Os movimentos da personagem explicitam e problematizam as questões de gênero da sociedade, especialmente na comunidade tradicional de origem pomerana, onde apesar de ocupar lugar central na organização social, ainda é invisibilizada. 
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    Eu sou a filha, a mãe, a guardiã, e a criada da terra. Vim dos eitos abertos pelo metal da enxada, do sal de suor temperando torrões de solo vermelho, pisado por pés descalços, endurecidos como o semblante dos rostos que carregam. Vim vestida de desuso e descarte, de remendos, amarrados, vim de segunda mão. Da aba larga do chapéu cobrindo meu rosto, meus cabelos, minhas cicatrizes, minhas rugas, minhas manchas. Vim vestida de outro alguém, do que não teve valor. Vim sem ser percebida, mas sempre demandada.

    O chão devolve em mim as formas que nele faço. Minhas mãos têm rasgos fundos como as leras que cavo. Vãos emolduram meus olhos. Marrom, preto e verde desenham minhas unhas, falésias racham meus calcanhares de pedra. Minhas mãos de pele dura, forjada nas ferramentas arcaicas com que minero o sustento. Pele que recobre os dedos rápidos e certeiros, que dançam compassadamente com linhas e agulhas e deixam no pano a delicada beleza do cotidiano que meus olhos podem ver.

    Sou letrada em vida. Leio o futuro em sementes, entendo a língua do vento, interpreto a cor das nuvens. Sou vivente dos processos, temporadas, estações. Sou tão eu quanto sou o que me cerca.

    Levanto na penumbra, espalho cheiro de família na casa, inauguro o dia e a lida. Cuido dos meus, mais do que de mim. Da energia das crianças, da fome do homem, do caminhar dos anciãos. Estou na água que banha, no cheiro do prato, na roupa limpa que acaricia o corpo, na cama feita que recebe o cansaço, no remédio que tira a dor, nos garranchos do menino que aprende a ler.

    Eu sinto o ar adicto de éter entrando pela porta do quarto, e permaneço imóvel, na esperança de não ser vista. Um espírito gélido, para a carne não ser tocada. Me deito com quem me roubou de mim, e me condenou a viver disfarçada de lar.

    Falo o que não entendem. Na língua mãe, morta aos poucos em cada geração de filhos da nova terra. Na língua das mães, inaudível, invisível, inacessível. Falo pelas marcas que deixo no mundo. No som dos passos amassando as folhas no caminho da roça, no crepitar da lenha no fogão, no milho das criações estalando no chão, nos grãos de café girando na peneira. Falo em flores desabrochando na varanda, buscando leveza, trazendo a natureza que me dá ‘sustento até a casa que me dá proteção. Falo na dança dos casamentos, das quermesses, das festas da colheita, nos passos rápidos, rodopiando pelo salão, em absoluto silêncio e com aparência ainda séria, de quem não é permitida mostrar-se feliz.

    Sou filha da terra, cresceram comigo os jequitibás e ipês, dando palco para as aventuras da infância, esconderijo na mocidade, sombra no sono da minha prole, e apoio para as costas cansadas no fim do dia. Sou mãe dos jardins que criei, das lavouras que em cada estação eu fiz, sou a matriarca dos campos que cuidei, nutri, limpei, da esperança colocada em cada muda, de ver a vida seguindo com mais leveza. Sou a guardiã desse terreno, dos costumes, de receitas, de musica e histórias, da língua do meu povo, de fé e religião, da história dos ancestrais, e de uma comunidade inteira que pouco a pouco se perde tentando pertencer ao mundo grande. Sou criada do meu trabalho, do meu pedaço de chão, da família que comigo mora e da que veio antes de nós. Sou serva dos tempos, dos períodos e do clima, do que não posso controlar, da fé que mantenho e que guia meus dias, esperando que o grão vire moeda, e que a natureza permita ao trabalho prosperar.

    Sou o fruto do sonho dos pomeranos, colhido a um oceano de distância do lar. Sou semente da cultura que insiste em continuar, rendendo filhos no território que cultivamos e vimos prosperar. Sou resistência, sou ela, sou elo entre passado e futuro, o nó que segura a família, o braço que sustenta o povo. Sou muito mais do que me permitiram ser, e sigo sendo, até que notem a sabedoria que posso contar."

     

    Considerações finais: A personagem conceitual personifica e exponencia as vivências e experiências das mulheres pomeranas. Ao reconhecer e valorizar as práticas e saberes das mulheres, e identificar seus desafios, promovemos uma maior compreensão e apreciação da riqueza cultural e humana das comunidades tradicionais, como os pomeranos.

     

  • Keywords
  • mulheres, zona rural, agricultura; saúde das minorias étnicas
  • Subject Area
  • EIXO 6 – Direito à Saúde e Relações Étnico-Raciais, de Classe, Gênero e Sexualidade
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