O desastre ambiental das enchentes uruguaianenses: olhares à saúde dos trabalhadores de enfermagem

  • Author
  • Maria Laura Gaeta Hipolito da Silva
  • Co-authors
  • Lidiane Herlin Dalla Vecchia , Alexsander Antunes Lucho , Eduardo Pereira Lopes , Leticia Silveira Cardoso
  • Abstract
  • Ser trabalhador de enfermagem carrega um estereótipo impregnado por uma capacidade nata de cuidar e ser resiliente. Isto porque, nos dias atuais, ainda é uma profissão majoritariamente constituída por trabalhadoras, mulheres. Estas historicamente foram por muito tempo as únicas responsáveis por prover os cuidados com a casa, filhos, marido, pais e sogros. Já que foram naturalmente escolhidas pela dádiva divina para gerar uma nova vida, o que lhe garante a capacidade de cuidar de todos e tudo, ser suficientemente resistente às situações de escassez de recursos materiais ou afetivos,  de violência, subjugação, humilhação, entre outras depreciativas. Nesta perspectiva, os trabalhadores de enfermagem vêm a anos lutando por reconhecimento profissional e social em relação às suas competências e habilidades específicas adquiridas a partir de um processo de formação profissional fundamentado em evidências científicas e constituído como área de conhecimento específica. A única vocação que se pode associar à profissão de enfermagem é a capacidade de gostar de pessoas, que permite maior empatia com elas durante o exercício profissional, cujo é viável somente pelo estudo e busca constante do aprendizado. Nos últimos anos os trabalhadores de enfermagem têm recebido grande atenção midiática em virtude do enfrentamento na linha de frente das emergências em saúde pública ocorridas a nível mundial. Entretanto, antes mesmo da vivência da pandemia da Covid-19, desastres ambientais como as enchentes já ocorriam e impactavam o trabalho em saúde. Quer-se neste contexto de sofrimento e desalento provocado pelas perdas decorrentes das enchentes no Estado do Rio Grande do Sul - Brasil, lembrar que os trabalhadores de enfermagem continuam atuando na linha de frente dos serviços de saúde nos diferentes níveis de complexidade da atenção e também vivenciam tais sentimentos. Logo, este estudo foi elaborado com o objetivo de despertar os gestores e a sociedade para as necessidades de cuidado dos próprios trabalhadores de enfermagem atuantes na prestação de serviços de saúde junto à população desabrigada pelas enchentes. Trata-se de um relato de experiência de pessoas atuantes como voluntárias em ações de assistência social aos desabrigados do município de Uruguaiana, Rio Grande do Sul - Brasil, atingidos pelas enchentes  dos anos de 2022, 2023 e 2024. A sumarização das informações são compartilhadas a partir das principais frases ouvidas de trabalhadores de enfermagem e outras pessoas circulantes nestes ambientes. “Somos trabalhadores alagados” com esta frase deseja-se destacar alguns aspectos da estrutura e dos recursos indisponíveis nos ambientes de trabalho, especialmente nos alocados nas comunidades, como as Estratégias de Saúde da Família e os abrigos onde se realizaram ações de trabalho. Nos últimos dois anos até o presente momento as Estratégias de Saúde da Família do município de Uruguaiana estão sendo submetidas a um processo de revitalização e reforma. Estas estão sendo realizadas para mais do que melhorar os aspectos visuais com limpeza, consertos e pintura da infraestrutura. Elas estão adequando os ambientes para o armazenamento e processamento de materiais utilizados nos procedimentos de saúde e para o descarte de resíduos, contribuindo para o controle de infecções relacionadas à assistência à saúde, conforme preconizado pela Associação Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Em paralelo, os aspectos de acessibilidade para pessoas com deficiência estão incipientemente aplicados. Houve a construção de rampas para cadeirantes, mas o acesso para cegos, surdos e mudos requer a aplicação de recursos, conforme Portaria do Ministério da Saúde, número 793/2012 e política nacional. Estas dificuldades já são enfrentadas no dia-a-dia do trabalho e por si só já causam desgastes e insatisfação tanto para os trabalhadores de enfermagem como para os usuários e seus familiares. Entretanto, a frase supracitada desses trabalhadores relaciona-se à submersão dos poucos recursos materiais nas águas das enchentes que não poupam os estabelecimentos de saúde e seus trabalhadores. Degradam o existente e o já refeito, trazem sentimentos de desalento e incapacidade para a realização da assistência à saúde e a obrigação de aplicar esforços para tornar as Estratégias de Saúde da Família minimamente seguras para o atendimento das pessoas e para a atividade laboral. Tais sentimentos são ampliados quando novos ambientes de abrigo são alocados na territorialidade das Estratégias de Saúde da Família, agregando novos moradores com necessidades em todas as dimensões humanas, ou seja, biopsicossociais, conforme a teoria de Wanda Horta. Nos diferentes períodos de enchentes uruguaianenses pode-se observar a redução do número de trabalhadores das diferentes classes profissionais que atuam nas equipes de saúde da família, aspecto que sobrecarrega os que permanecem em atividade, pois não há o deslocamento de novos trabalhadores de enfermagem para auxiliar as equipes que continuamente vivenciam as enchentes. Outra frase a ser considerada é "Estamos aqui para ajudar e somos agredidos", surge uma sensação de vulnerabilidade e a presença de tensão emocional enfrentada por aqueles que dedicam suas vidas ao cuidado dos outros. O uso de expressões vulgares, a elevação da intensidade da voz, a movimentação corporal brusca e de encontro ao corpo do outro caracterizam as agressões observadas em relação ao expresso pelos trabalhadores de enfermagem atuantes nas enchentes uruguaianenses. Foi evidenciado que a recusa em reconhecer que certas áreas são inadequadas para abrigos foram um ponto de grande conflito. A insistência em ocupar locais impróprios expõe tanto os trabalhadores como a comunidade a riscos adicionais, aumentando a necessidade de intervenções em saúde de emergência. Paralelamente, ocorre a disseminação social difamatória sobre o exercício profissional destes trabalhadores, o que muitas vezes produz sensação de impotência e incapacidade, prejudicando a médio e longo prazo os aspectos psicoemocionais desses trabalhadores que também enfrentam os impactos da enchente em seu ambiente domiciliar/familiar. O uso de álcool e drogas entre a população afetada pelas enchentes agrava o sofrimento e cria uma série de outros problemas de saúde e sociais, tornando o trabalho dos trabalhadores de enfermagem desafiador. Neste contexto de vulnerabilidade, com aumento das cargas de trabalho, ouviu-se inúmeras vezes no diálogo entre trabalhadores de enfermagem a seguinte frase: "Se adoecemos, quem se preocupa conosco?". Isto ilustra o sentimento de abandono experimentado pelos trabalhadores de enfermagem quando suas próprias casas/famílias são afetadas pelas enchentes. O conflito ético e emocional surge da necessidade de cuidar dos outros enquanto enfrentam ameaças pessoais, a perda de seus próprios bens e entes queridos e a presença de pessoas de outras comunidades e gestores de diferentes áreas e instituições buscando usufruírem do seu próprio trabalho ou da colaboração advinda do trabalho de voluntários para alcançarem destaque midiático. Fato que chegou ao ponto de ouvir-se a frase: “Tem que fazer algo para as mídias, precisamos mostrar que estamos ajudando” ou pior, o uso das mídias sociais para desfazer do trabalho realizado. Conclui-se que o enfrentamento de enchentes pelos trabalhadores de enfermagem é uma constante anual nos serviços de saúde em Uruguaiana. Ela paulatinamente força a engrenagem laboral a resistir às perdas, aos excessos e descompassos sociolaborais. Para os quais não ocorrem intervenções ocupacionais protetoras das relações interpessoais, interprofissionais e de saúde mental pelos gestores públicos, seja a curto, médio ou longo prazo. Por tudo isso, faz-se necessário incluir entre as estratégias públicas de intervenção social decorrentes de desastres ambientais como as enchentes, ações e intervenções em prol da preservação e manutenção da saúde dos trabalhadores, em especial de enfermagem, pois sempre estão na linha de frente dos serviços de saúde e no atendimento às necessidades comunitárias.

  • Keywords
  • Desastre Climatológico, Saúde Ocupacional, Enfermagem.
  • Subject Area
  • EIXO 2 – Trabalho
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