As Estratégias de Saúde da Família caracterizam-se como estabelecimentos de saúde inseridos em ambientes comunitários dos municípios. Isto para que seus trabalhadores possam cumprir as diretrizes de torná-lo porta de entrada no atendimento às pessoas e estrutura organizadora do itinerário dessas na rede de atenção do Sistema Único de Saúde. Tal cumprimento está impregnado pela compreensão do que é o trabalho e pelo sentido que ele adquire no cotidiano da vida e das relações interpessoais. Pode-se dizer que a definição de trabalho torna-se mais clara quando o trabalhador sabe qual fim o está realizando, já que este está ao encontro do sentido que ele terá para o trabalhador ao longo de cada momento da vida. Pelo prisma marxista o trabalho é a expressão do posicionamento dos gestores assumido pelos trabalhadores em relação ao modo de produção em saúde. Para Antunes, é um processo de negociação, ou seja, venda da força de trabalho em troca da remuneração. Já para Dejours ele é uma dualidade em constante movimento de significação, impregnada pelas subjetividades das experiências vivenciadas e das estratégias de superação do sofrimento experimentado e de sua transformação em memórias prazerosas. Com base nos apontamentos supracitados, nas evidências científicas publicadas a respeito dos impactos da pandemia Covid-19 na saúde psicoemocional dos trabalhadores e dos diversos estudos que apontam para cargas de trabalho extenuantes e desumanizadoras na área da saúde, elaborou-se este estudo com o objetivo de compreender os sentidos do trabalho expresso por trabalhadores da saúde atuantes em Estratégias de Saúde da Família. Trata-se de uma pesquisa de campo, realizada no período de setembro de 2023 a abril de 2024, com 155 trabalhadores da saúde, dos quais foram selecionados 112 desses trabalhadores, por serem os atuantes em Estratégias de Saúde da Família em um município da fronteira oeste do Estado do Rio Grande do Sul, sendo referida pesquisa do tipo exploratória, descritiva e analítica desenvolvida como parte de um projeto de pesquisa vinculado ao Laboratório de Investigação e Inovação em Saúde de Populações Específicas (LIISPE). Para a coleta de dados utilizou-se a técnica de entrevista semiestruturada gravada, as quais foram transcritas e organizadas em um banco de dados. Para o presente estudo foram selecionadas as questões: Como você define/conceitua trabalho? Qual o sentido do trabalho para você?. Aplicou-se a análise qualitativa temática sustentada por Minayo. Esta pesquisa atendeu aos preceitos éticos das resoluções do Conselho Nacional de Saúde, número 466/2012 e 510/16. Utilizou termo de consentimento livre e esclarecido com os participantes, assinado em duas vias, garantindo a eles o anonimato, o acesso à informação e aos resultados, e se necessário a assistência em saúde. A pesquisa possui aprovação da Secretaria Municipal de Saúde e do Comitê de Ética em Pesquisa, CAAE 70614223.4.0000.5323. Para apresentação dos resultados aplicou-se a seguinte codificação: A12_ESF1, nas quais as vogais representam a classe profissional (A - enfermeiro, E - técnico de enfermagem, I - agente comunitário de saúde, O - médico, U - outros) e os números a ordem de realização das entrevistas (1, 2 , 3…) e a localização geoespacial dos estabelecimentos de saúde no município. A partir da análise dos dados, entre os resultados deste estudo tem-se que o trabalho pôde ser compreendido como elemento central do cotidiano capaz de dar sentido à vida. Para 60 (53,6%) dos trabalhadores da saúde participantes deste estudo ele é compreendido como positivo, ou seja, benéfico para a saúde do trabalhador e de sua família. Observe os relatos: “Ele que vai me ajudar a conquistar o que eu quero, alcançar as minhas metas para mim e para minha família” A68_ESF22. “O trabalho é a minha vida (...) onde convivemos mais tempo com as pessoas e criamos vínculos muito fortes que nos fazem evoluir como pessoas e profissionais” E67_ESF22. “Eu entendo o trabalho como um lugar que eu cumpro as obrigações da profissão que escolhi (...) que me ajuda a ter saúde mental porque eu me dou bem com as pessoas (...) passo 8 horas aqui (...)” I154_ESF07. Já para 46 (41%) é algo não prazeroso, cuja realização representa sofrimento e é realizada como uma obrigação para viver-se no modelo de sociedade atual, entendido como de consumo e adoecedor. Observe os relatos: “É de onde tiro minha subsistência, o recurso para poder viver (...) tenho que trabalhar e nem sempre o que ganhamos é o valor que achamos necessários para conseguir viver, ter tranquilidade e segurança emocional” A53_ESF23. “Eu trabalho no que eu tinha que fazer, no que o meu pai e minha mãe me ensinaram desde criança (...) eu acordo todo dia e venho fazer o que aprendi” U62_ESF23. “É um lugar de inversão do tempo, onde preciso ficar para ganhar meu dinheiro (...) não é para ser prazeroso” O80_ESF20. Tem-se ainda poucos, seis (5,4)%, que não sabem definir o que é trabalho e qual o seu sentido em sua vida ou que nunca pensaram nisso, simplesmente o realizam. Observe os relatos: “Não sei (...). Nunca pensei a respeito. Podemos pular também esta questão?” E55_ESF23. “Não sei dizer o que é (...) simplesmente eu vou lá e faço” I140_ESF01. De modo geral, a proposição positiva do sentido do trabalho, na perspectiva temporal do presente, promove a saúde psicoemocional dos trabalhadores da saúde atuantes em Estratégias de Saúde da Família. Positividade relacionada a possibilidade de saber que se tem algo a fazer para 15 (25%) dos 60 (100%) participantes; que se pode fazer a diferença na vida/saúde de outras pessoas, os usuários/famílias, nove (15%); e principalmente que se possui uma fonte de subsistência familiar, 23 (38,3%). Em relação ao futuro, a positividade do trabalho está posta pela viabilidade de conquistar materialidades de consumo, sete(11,7%) e do sentimento de evolução profissional e pessoal adquirido a partir das interações estabelecidas e das trocas vividas diariamente junto aos demais trabalhadores e usuários em prol do cumprimento dos objetivos do trabalho e do alcance de resolutividade e reconhecimento, que expressam o sentimento de satisfação profissional, seis (10%). Por outro lado, a negatividade relacionada ao sentido de trabalho congrega uma perspectiva temporal de passado, determinada a partir da escolha ou possibilidade de formação profissional para 18 (39,1%) dos 46 (100%) trabalhadores, da influência dos pais nessa, dois (4,4%) e das mudanças, no cotidiano familiar, laboral e social, impostas pelo enfrentamento da pandemia da COVID-19, oito (17,4%). Na temporalidade do presente, as determinações supracitadas produziram uma compreensão de trabalho forçado, no qual o trabalhador precisa se esforçar para realizar, sentindo-se obrigado, torturado e desgastado com a rotina que precisa submeter-se para ter acesso a uma fonte de renda, muitas vezes compreendida como não satisfatório de suas necessidades e desejos para 18 (39,1%). Pode-se concluir que para os trabalhadores da saúde atuantes em Estratégias de Saúde da Família existe minimamente uma dualidade de sentidos relacionada à compreensão de trabalho. Ela é constituída a partir do somatório das diferentes teorias que buscam defini-lo e que em algum momento do processo de formação de cada profissional foram abordadas, mas principalmente pelas experiências do próprio exercício profissional que permitiram o fortalecimento de conceitos teorizados e que majoritariamente foram singularizados pela subjetividade das relações interpessoais e profissionais que o tornaram elemento central e positivo, na temporalidade do presente e do futuro, na vida e para a saúde destes trabalhadores.