O presente trabalho consiste em um primeiro movimento de pensar sobre os diagnósticos médicos e os encaminhamentos para o Atendimento Educacional Especializado (AEE) e a produção da infância atípica. Experiências da docência na Educação Especial, nos contextos da escola pública, apontam que o número de crianças em atendimento e avaliação, se dá em maior incidência entre meninos. A partir de estudos de gêneros e sexualidades, parece fazer sentido a relação entre indicadores de características diagnósticas de supostas deficiências ou transtornos no âmbito escolar com as de gênero.
Recorrendo a dois casos específicos de estudantes classificados por gênero, na escola, foi possível exercitar a reflexão: Mariana (4 anos), desde os primeiros dias na escola começou a chamar atenção pelo seu comportamento: dificuldade em se localizar no espaço, esquecia a sua mochila, não respondia quanto chamada, não seguia comandos nas brincadeiras, tinha pouca interação comunicativa com os colegas. A aluna classificada como menina não havia sido encaminhada para avaliação. Antônio (4 anos) foi encaminhado para avaliação na primeira semana letiva, com as queixas de que tinha dificuldade em seguir comandos, demora para responder quando chamado, dificuldade na comunicação, agitado e isso poderia ser indicadores de algum desvio e risco no desenvolvimento.
Uma possível explicação para essa identificação e indicação na escola tem guarida no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), o qual expressa que muitos transtornos apresentam o masculino como sendo o de maior prevalência, como por exemplo, o Transtorno do Espectro Autismo, a Deficiência Intelectual, o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (ROTTA, OHLWEILER e RIESGO, 2016). Na legitimidade do manual é possível pensar que, nas descrições dos transtornos, justifica a predominância de encaminhamentos de meninos.
A reflexão inicial mobilizou a busca por trabalhos que tem referência nesta interrelação entre supostas deficiências ou transtornos, no âmbito escolar, e gênero. Na busca por ‘deficiências ou transtornos e gêneros’ no Catálogo de teses e dissertações da CAPES encontrou-se 07 trabalhos (05 dissertações e 02 teses). Dessas investigações duas têm relação específica com a escola e apenas uma contempla a discussão da relação entre diagnósticos de transtornos e gêneros. Sendo assim, buscou-se no programa da disciplina PPE944 do PPGE/UFSM que tem como foco esta discussão.
Carvalho (2001) discutiu os critérios de avaliação usados ??por professores de uma escola de São Paulo, a partir dos significados que têm construído sobre masculinidade e feminilidade e como estes dão sentido a suas práticas docentes. Nos resultados, Carvalho (2001) identifica que não apenas se reconhece a existência de problemas escolares maiores entre os meninos, como também a imagem de “bom aluno” estaria mais associada às meninas brancas (p. 561). Além das questões de gênero, se interseccionam questões de raça, capacitismo, dentre outros.
No trabalho de Alves (2019), algumas pistas apontam para maior incidência de dificuldades e distúrbios de aprendizagem diagnosticados em meninos, com foco nas interseções de gênero e raça, tomando como referência fontes documentais junto a quatro casos clínicos. A autora reforça o dado que o maior número de transtornos ocorre em meninos, considerando o viés biológico e as características hormonais no amadurecimento cerebral e, sobretudo, o viés histórico-social. Os meninos são o maior número de encaminhamentos para atendimento especializado em decorrência de indisciplina, baixo rendimento escolar e até mesmo de violência, atitudes que muitas vezes estão relacionadas com a autoafirmação da masculinidade (ALVES, 2019).
Por outro lado, identifica-se o efeito do patriarcado e a constituição da feminilidade como reafirmação na história da medicina psiquiátrica nos diagnósticos de inferioridade mental das mulheres, a loucura das feministas e a farmacologia considerando a prevalência de uso de antidepressivos em mulheres, mostram segundo Caponi (2023) podem movimentar o lugar machista que histórico e culturalmente impactam nas práticas de invisibilidade de um diagnóstico de crianças-meninas atípicas e da necessidade de dar visibilidade e correção de crianças-meninos como lugar de superioridade e por isso de poder de controle dos homens de seus comportamentos para se manterem as estruturas sociais.
As normas médicas e educacionais e a biopolítica (política que gerencia modos de vida e da população tendo como objeto de controle a vida de cada um e de todos permitindo construir a exclusão de certos grupos e definindo quem vive e quem é deixado à própria sorte (FOUCAULT e AGANBEM) dos encaminhamentos de diagnóstico e correção dos comportamentos masculinos parecem ter um grande valor na escola contemporânea.
A partir destas reflexões iniciais, pretende-se encaminhar um trabalho empírico junto a escolas de educação infantil do município de Santa Maria - RS e profissionais clínico envolvidos com diagnóstico de encaminhamentos de avaliação para avançar na discussão de como as questões de gêneros principalmente de masculinidade e de feminilidade tem nos encaminhamentos das avaliações e atendimentos especializados e dos processos de produção da infância atípica.