O cuidado intercultural em saúde para povos indígenas tem sido um importante desafio para o Sistema Único de Saúde (SUS), uma vez que a integralidade e equidade fazem parte de seus princípios fundamentais. Mesmo com a implementação do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI-SUS), criado após reivindicações de usuários e trabalhadores do SUS, é possível encontrar inúmeros desafios que emergem nos cenários de assistência a esta comunidade tradicional. No presente trabalho, objetivamos refletir sobre os percursos/caminhos da construção do cuidado hospitalar intercultural para mulheres indígenas, sob a ótica da Política Nacional de Humanização do Parto e Nascimento (PNHPN). Para isso, é preciso expor o contexto em que vivem os povos indígenas no cone sul do Mato Grosso do Sul. A criação de reservas indígenas no Mato Grosso do Sul fundamentou-se em uma lógica colonialista de expropriação dos territórios indígenas e catequização dos povos originários que aqui se encontravam. Houve neste contexto o processo de sarambi (esparramo) destas pessoas, e em 1917, a criação da Reserva Indígena de Dourados (RID). Esta, é caracterizada por ser um ambiente multiétnico, com a presença de pessoas das etnias guarani kaiowá, guarani ñandeva e terena. De acordo com o último censo demográfico brasileiro, no município residem cerca de 13.473 indígenas, em diversos contextos habitacionais, a saber: reserva indígena, retomadas, assentamentos e área urbana. Neste cenário, em que a mata nativa deu lugar à monocultura latifundiária e ao avanço desmedido dos interesses imobiliários, encontra-se o Hospital Universitário da Grande Dourados (HU-UFGD), referência na assistência terciária à população indígena de 34 municípios no Mato Grosso do Sul. O hospital é, também, sede e campo de prática de Residências Multiprofissionais em Saúde, pós graduação do tipo lato sensu, sendo três as ênfases disponíveis no processo seletivo: Atenção Cardiovascular, Saúde Materno Infantil e Atenção à Saúde Indígena. Dessa forma, nossas reflexões partem de nossas vivências enquanto psicólogas residentes nos setores da linha materno-infantil do HU-UFGD. Além da experiência hospitalar – com destaque para assistência psicológica de puérperas indígenas – vivemos, também, o cuidado na atenção básica do território e participamos de espaços diversos de construção de saúdes, como Assembleias Indígenas e reuniões institucionais no hospital (Rede Cegonha, Comitê de Saúde Indígena, Comissão de Humanização, etc). Essas vivências são relatadas periodicamente em diário de campo, com a finalidade de registrar e possibilitar a reflexão sobre os desafios e as transformações do percurso da construção conjunta do cuidado em saúde. Ao adotar a escrita diarística, tentamos nos aprofundar em diversos aspectos (negativos, agressivos, julgadores etc) que nos atravessam fortemente no cotidiano do trabalho e, assim, nos aproximamos do exercício da implicação, sem qualquer pretensão de neutralidade ou objetividade. A partir da releitura dos nossos escritos, propomos três categorias importantes para a reflexão sobre a assistência multiétnica: a instituição hospitalar, a tradição/cultura e a língua. No que tange à instituição hospitalar, situamos que a Rede Cegonha, ao instituir uma política voltada para modelo de atenção centrado nas necessidades únicas e individuais das pessoas (destaque para a Portaria 1.459 de 2011), considera os diversos aspectos multiétnicos que envolvem a assistência aos povos indígenas no parto e no nascimento. Entretanto, nos espaços de diálogo construídos pelas mulheres guarani e kaiowá em que estivemos presentes (em especial a Kuñangue Aty Guasu, Assembleia das Mulheres Guarani e Kaiowá), estas situaram as instituições hospitalares como um ambiente hostil à manutenção de práticas culturais importantes para o bom desenvolvimento da gestação, parto e puerpério. É evidente que a instituição hospitalar, fundada sobre protocolos e normativas rígidas, não comporta a diversidade de modelos tradicionais e indígenas de parir e nascer, conservando práticas medicalizantes apesar das políticas de humanização do parto. Dessa forma, na assistência obstétrica, mulheres indígenas são sujeitadas exclusivamente ao ambiente hospitalar, uma vez que o parto domiciliar pelo SUS não é uma opção. O cuidado hospitalar inserido em uma lógica higienista e medicalizante não tem se mostrado eficaz para reduzir as taxas de mortalidade materna e infantil e em muito se contrapõe às formas de parto e nascimento das mulheres guarani e kaiowá. Nessa direção, acerca da categoria "tradição/cultura", vale destacar que, como indicado nas falas e literatura sobre a temática, as ñandesys (lideranças religiosas) são figuras femininas de resistência e cuidado importantes no território guarani e kaiowá, fundamentais para a preservação dos conhecimentos tradicionais sobre saúde. Dentre os cuidados preconizados pelas ñandesys no período gravídico puerperal é possível encontrar registros sobre o uso de cantos e rezas, a necessidade de enterrar a placenta próximo à porta da casa, a realização de massagens e banhos com ervas, o resguardo da parturiente e recém-nascido, bem como cuidados com a alimentação dos pais. Acerca do idioma, a ausência de profissional intérprete da língua guarani mostra-se um desafio para o estabelecimento de um cuidado humanizado e especializado aos kaiowá e guarani dentro da instituição. A impossibilidade de diálogo entre usuários indígenas e profissionais não-indígenas tem estabelecido um violento processo de silenciamento dos sujeitos, que se encontram, por vezes, impossibilitados de reivindicar e exprimir suas demandas no contexto do bilinguismo. Neste sentido, inviabiliza-se a reprodução de rituais, da língua e do teko porã (bom modo de ser dos kaiowá e guarani), que reflete a tentativa histórica de apagamento de corpos dissidentes e cosmologias outras. Colocados os desafios, entendemos a importância de enunciar os esforços coletivos para melhoria da humanização da construção de saúde junto aos povos indígenas. No local desde onde falamos, apesar das grandes dificuldades, podemos presenciar avanços, como a criação do Comitê em Saúde Indígena do Hospital Universitário da Grande Dourados (HU-UFGD). Este, tem realizado esforços na direção do cuidado para com os povos indígenas, tais como a elaboração de placas em língua guarani, a realização de simpósios em saúde indígena como forma de capacitar os profissionais, a construção de maior aproximação com a Secretaria Especial de Saúde Indígena e Distrito Sanitário Especial Indígena de Mato Grosso do Sul, e a formulação de discussões iniciais para a construção de uma Oga Pysy (casa de reza). A nível nacional é possível encontrar outras iniciativas e serviços que preconizam o cuidado às especificidades em saúde da população indígena, como o Ambulatório em Saúde do Hospital Universitário de Brasília (HUB-UnB) e o Ambulatório de Saúde dos Povos Indígenas do Hospital São Paulo (Unifesp). À guisa de conclusão, este estudo, semeado no cotidiano da assistência, sugere que os esforços institucionais de humanização ainda são incipientes e insuficientes para garantir uma assistência intercultural de qualidade. Ressaltamos, por fim, que as discussões sobre saúde e direitos reprodutivos de mulheres indígenas são escassas e permanecem como campo de disputa e luta para lideranças indígenas. Como tentativa de contribuir neste campo, temos em curso uma pesquisa cujo objetivo é analisar as experiências de parto hospitalar de mulheres indígenas e contribuir para a implementação de políticas de humanização nestes espaços.