Este trabalho é aderente aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável no Brasil da ONU, e aos objetivos da COP 30 (novembro de 2025, Belém-PA, Amazónia) visando contribuir para a reflexão sobre os desafios dacontemporaneidade para consolidar interfaces entre saúde mental e saúde humana, com sustentabilidade, no país. Tem como objetivo geral apresentar os resultados da experiência de supervisão clínica junto ao subprojeto de extensão Clínica Psicológica Virtual da Universidade Federal do Pará, que integrou o projeto de extensão Saúde, Cidadania e Direitos Humanos: Apoio a Comunidades e estudantes Indígenas e Quilombolas (Portaria IFCH/UFPA n. 134/2018).
O objetivo geral do projeto Clínica Psicológica Virtual, realizado inicialmente no contexto agudo da pandemia de COVID-19, consistiu na implantação de um dispositivo clínico virtual que oferecesse a prestação de serviços psicológicos, por meio de tecnologia da informação e comunicação, para a escuta psicológica do sofrimento psíquico de cidadãs e cidadãos, residentes na região metropolitana de Belém, durante o período de isolamento social da COVID-19.
No marco do anúncio pela OMS da pandemia de COVID-19, docentes de outras instituições federais de ensino superior do Brasil e de outros países somaram-se aos esforços deste trabalho junto aos docentes da UFPA, na atividade de supervisão dos casos clínicos, atendidos pelo coletivo de profissionais psicólogas/os, matriculados e egressos do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, bem como seus docentes e pós-doutorandos/as, disponíveis para atuar como voluntárias (os) no projeto. As atividades de supervisão ocorreram semanalmente, duas vezes e, também, em formato remoto.
A Clinica Virtual da UFPA foi estruturada em um planejamento estratégico com ações mensais de educação permanente com temas eleitos pelos voluntários e contou com a participação de vários convidados; com reuniões semanais de análise de conjuntura e acompanhamento epidemiológico da situação da Covid, assim como realização de reuniões em rede com as equipes de saúde mental do Município e do Estado, como forma de manter o fluxo de atendimento e garantir o encaminhamento, caso houvessem demandas para além da clínica psicológica. O desafio central de ajudar as pessoas a elaborar o vivido se somava a adaptação da Psicologia a utilização da rede virtual para promover a escuta clínica, o que foi desenvolvido também por vários grupos e instituições psicológicas, levando o Conselho Federal de Psicologia a regular a prática do atendimento virtual.
Importante destacar que as características da pandemia envolveram: descrença no processo de gestão e coordenação dos protocolos de biossegurança; necessidade da população de adaptação aos novos protocolos de biossegurança; distanciamento da rede afetiva e necessidade de isolamento; falta e/ou escassez de equipamentos de proteção individual em vários serviços de saúde (EPI); risco de ser infectado e infectar outros; risco de agravamento da saúde mental e física, em especial em grupos mais vulnerabilizados; alterações da mobilidade e deslocamentos humanos.
Desde o início da pandemia, a ONU alertou para uma onda epidêmica de desencadeamento de sofrimentopsíquico. De fato, a pandemia fora o marco histórico da recessão econômica mais profunda no mundo desde a catástrofe da II Guerra, afetando grupos sociais mais vulnerabilizados: mulheres (mães, jovens, desempregadas), homens (desempregados que perderam os meios para sustentar sua família), crianças,pessoas em extrema pobreza, refugiados, pessoas expostas a eventos potencialmente traumáticos, que vivem com transtornos graves preexistentes, físicos, neurológicos ou mentais, que sofrem estigmas sociais, ou que estão em risco de violação de direitos humanos. Isso se verificou ao longo das supervisões clínicas, sendo possível delimitar um conjunto de traços sintomáticos bastante preciso, e comum às demandas de tratamento encaminhadas à clínica psicológica virtual:
1.Diferentes graus de declínio do sentido de vida: desde a falta de energia associada a ruptura do horizonte de futuro, com desinteresse por manter atividades diárias de rotina, a irrupção de tristeza e angústia até a ideação suicida; o medo de se contaminar e de contaminar outros;
2.Desencadeamento de sentimentos e sintomas de desamparo, depressão e desalento, associados a desintegração social, o que sugeriu que a instabilidade política com ambiguidade de informações sobre a COVID-19, por parte do governo brasileiro naquela época, produziu a fragilização de políticas públicas de educação sobre a pandemia, e de saúde quanto a prevenção, promoção e tratamento, impactando o suporte às estratégias para lidar com a situação pandêmica, contribuindo para deixar sob a responsabilidade do sujeito a decisão pelo tratamento da COVID-19 e de sua forma de prevenção.
Considerando que a época atual impõe condições que se assemelham, ou inclusive repetem, as condições da miséria do mundo que Freud retratou no período entre-guerras e pandemia de influenza, considerando que a formação e o funcionamento do aparelho psíquico são imanentes aos atingimentos provocados pelo funcionamento social, levantamos a hipótese de abalo ou trauma psíquico e interrogamos sobre quais seriam as operações da fantasia diante de uma situação de catástrofe. A partir desta hipótese, propusemos por meio da atividade de supervisão, uma direção clínica para atendimento dos casos endereçados à Clínica Virtual, a partir das seguintes etapas: 1. Delimitação do quadro sintomático apresentado pelos pacientes em relação a pandemia de COVID-19; 2. Construção de uma hipótese sobre o conflito psíquico que poderia estar na base dos fenômenos clínicos; 3. Delimitação da fantasia inconsciente que sustenta o conflito psíquico. Alguns resultados significativos puderam ser observados: os pacientes perceberam que o cuidado com a prevenção da COVID-19 não era restritivo, mas possibilitador de vida; que algumas rotinas poderiam ser retomadas desde que com uso de máscaras e higienização adequadas; além de estabilização de sentimento de desamparo, angústia, depressão e desalento.
No entanto, os resultados obtidos não tiraram a relevância de se avançar na investigação da seguinte hipótese : a ambiguidade das informações governamentais, somada à emergência sanitária de COVID-19 impactaram no funcionamento subjetivo da população que procurava a Clínica Virtual; ou seja, a conjunção entre uma política que se direciona ideologicamente no sentido de minimizar, economizar e negar informações precisas a respeito de uma emergência sanitária/humanitária, sobre determiminou os próprios sintomas decorrentes da conjuntura catastrófica.
Um desafio que se somava no cenário era justamente ofertar cuidado quando os próprios trabalhadores da saúde estavam imersos nos mesmos dilemas e medos de contágio, uma vez que a transmissão aérea do vírus aumentava as possibilidades de contaminação, aliada a falta de ação propositiva do governo para o enfrentamento da pandemia.
Na história psicossocial das emergências sanitárias/humanitárias, uma série de documentos, artigos e livros, apresentam conhecimento acumulado acerca de intervenções psicológicas para prevenir e estabilizar problemas de saúde mental, e para formulação de políticas públicas de prevenção e cuidado de saúde mental, que serão revisados neste trabalho, onde pretendemos trazer para o debate e aprofundar, os estudos e pesquisas sobre pandemias e sofrimento psíquico, com vistas a contribuir para a prevenção e cuidado nessa área. As mudanças efetuadas pelo ser humano na forma de habitar o planeta tem contribuído para o surgimento de novos eventos emergenciais, entre eles as drásticas mudanças climáticas. A Psicologia através de suas ferramentas pode contribuir na gestão integral de riscos em desastres auxiliando no enfrentamento e nas mudanças necessárias que a humanidade precisa desenvolver na busca por um bem viver dos coletivos.