Apresentação
Trata-se de uma palestra-performance, com cerca de 1h de duração, que se perfilou como o fruto mais desafiante do estágio pós-doutoral realizado na Linha de Pesquisa Psicossociologia da Saúde e Comunidades, do Programa de Pós-graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social (EICOS), da UFRJ, sob orientação de Emerson Elias Merhy, no período de agosto de 2022 a agosto de 2023. A ferramenta artístico-pedagógica conta com a direção teatral de Thom Galiano, constituindo um mosaico das elaborações e fabulações tecidas com retalhos dos múltiplos efeitos de um processo de “desmontagem” da professora-cartógrafa: uma cartografia da prática docente voltada à formação de profissionais de saúde/saúde mental, que vem sendo exercida desde 2008, na vaga cujo perfil se intitula “Saúde Mental e Processos Psicopatológicos”, no Colegiado de Psicologia, da Universidade Federal do Vale do São Francisco/Univasf.
A cartografia revisitou tatuagens impressas no meu corpo, particularmente pelas experiências vividas em componentes curriculares da graduação de Psicologia – “Estágio Profissionalizante”, “Saúde Mental I” e “Núcleo Temático Políticas da Vida” – ofertados na relação com políticas públicas –, no Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde/PET-Saúde – em especial na edição sobre Interprofissionalidade – e na Residência Multiprofissional de Saúde Mental – em que atualmente assumo a função de docente e tutora. Em todos estes cenários – ou dispositivos – a questão da inter/transdisciplinaridade se interpõe como desafio, em que Extensão, Ensino e Pesquisa são tomados como fios de uma mesma trama, conectada à perspectiva de uma formação profissional de caráter transversal, que atravessa e se deixa atravessar pelo valor da experiência, burilada pela potência dos encontros, e, assim, busca vias de ampliar a competência para a leitura e trânsito do/no mundo.
A desmontagem da “persona docente”, termo tomado de empréstimo do teatro, com base no trabalho de Tânia Farias, integrante da Tribo de Atuadores Ói nóis aqui traveiz, foi disparada a partir da questão-bússola: Como refletir sobre práticas pedagógicas voltadas à formação de operadores(as) da saúde mental/atenção psicossocial para a produção do cuidado sustentada na potência do encontro e em um agir micropolítico?
Desenvolvimento
A ação performática foi ganhando contorno por um exercício sentipensante sobre efeitos do mergulho em um campo de experimentações no Rio de Janeiro, na perspectiva de revisitação de meu ofício como professora de Psicologia, ou melhor, de Saúde Mental, em uma universidade do sertão nordestino. Inspirada em alegoria apresentada por Michel Serres, fui me compondo como Barbara-Arlequina, fagocitando meu devir-docente. No Rio fui me metamorfoseando, na mesma medida em que reconhecia as tatuagens-casacos em meu corpo e sentia a impressão de outras; nesse processo, tantas vezes me percebi Macabéa, frágil e forte, permitindo a da gestação de Barbekina, “com K virado”, em minha pele.
De diários cartográficos, foi escrito o texto-base da opereta. Os escritos se relacionavam com leituras, viagens, experimentações corporais diversas (oficinas de teatro, de percussão, grupos de contato e improvisação etc.), debates com o grupo de pesquisa, conversas com interlocutore/as sobre o tema da formação em saúde mental, inclusive além-mar. Tendo posto meu corpo em circulação, tomei-o como território para a produção da opereta, guiada pela intenção genérica de expandir a minha relação com a prática docente, passagem multifacetada para encontros potentes, voltados à construção de mundos melhores neste mundo, pelo engravidamento de processos pedagógicos compromissados com micropolíticas do sensível e com um exercício contracolonizador, dois valores axiais nas experimentações vividas.
Resultados
Produzida por exercício cartográfico, disparado pelo compromisso de desmontagem da persona docente, a Opereta teve o texto lapidado e adaptado para compor uma ação performática em 9 movimentos: PRELÚDIO. Primeira anunciação: todo início já é travessia – A narradora anuncia Barbekina e a situa como uma tatuagem no corpo sem órgãos da professora de Psicologia, ou melhor, de Saúde Mental; MOVIMENTO 1. Segunda Anunciação: o brinquedo se faz corpo e o corpo se faz brinquedo – A chegança de Barbekina. Ela se apresenta ao público, como um brinquedo, uma brincante. Sertaneja. Debochada. Provocadora. Faz-se presente e convoca à presença; MOVIMENTO 2. Isto não é uma metáfora!: sobre reconhecer multiplicidades – A professora se questiona sobre quem é e revela seu processo de tentar compreender o agenciamento coletivo de enunciação, enquanto Barbekina tira onda; MOVIMENTO 3. Você que lute!: da necessidade de reaprender – Revelação da queda da professora, pela compreensão de que aprendeu tudo errado e, assim, precisa se desmontar, sendo a conexão com os saberes ancestrais uma das fontes mais potentes acessadas; MOVIMENTO 4. Sobre desaprender para produzir outros sabores/saberes – Apresentação da desaprendizagem como valor fundamental para a produção do cuidado, que pode ser obra de arte, na vida, como a própria vida, que pede cuidado; MOVIMENTO 5. Vida-Cuidado-Arte: fiando mundos – Introdução da questão de como aprender a construir presença para cuidar, em que se anuncia a desmontagem da professora, pela celebração da força maior da vida, que é se transformar, se diferenciar e produzir mundos, em composições variadas, a partir dos encontros; MOVIMENTO 6. Desmontagem: sobre a fertilidade de transitar nas fronteiras Desmontagem em ato, em plena navegação pelo campo das políticas cognitivas, em que se defende a potência de um ethos fundado na valorização do corpo (povoado, multidão) e do encontro; MOVIMENTO 7. Explicar para confundir: dobras em produção do cuidado - Brincando com o cachimbo, Barbekina convida a plateia e a professora a ir além da representação e bancar fazer furos nos muros, reavaliando valores e recorrendo a narrativas pluriversais; MOVIMENTO 8. Uma ode à criação: sobre a dor e delícia de tudo ser ficção/fricção – Barbekina mete mais o seu K na professora, que se rende à fertilidade da invenção, pela fricção, reconhecendo que tudo é ficção, pois um dia se produziu.
Considerações finais
A bússola, sabia – por saber de experiência –, pode se desgovernar e me levar a lugares impensados, sentindo-me eu aberta a tais andanças, bem interessada em jogar o corpo na dança dos encontros que serão tecidos. Na revisitação cartográfica, abri-me a outros prismas sobre o vivido, atenta às tatuagens inscritas em meu corpo – inclusive as ainda não percebidas – ao mesmo tempo em que novas se talharam em mim. Mergulhei sobretudo no campo da ativação do sensível, tendo sido a arte ferramenta potentíssima, e no campo da desmontagem colonizadora, pela degustação de saberes ancestrais, sobretudo bebendo nas fontes do SELVAGEM – Ciclo de Estudos sobre a Vida e de escritos de autores/as negros, como Nego Bispo, Grada Kilomba, Carla Akotirene, dentre outres.
A elaboração e utilização da Opereta, como ferramenta pedagógica, no campo da formação e produção do cuidado em saúde mental, constituindo-se em várias plataformas para voar (metáfora para a inventividade), buriladas no corpo-território da professora, evidencia a potência das dimensões estética e política na proposição de processos formativos, visando a construção de posicionamentos éticos, em contraponto a posturas tecnicistas do Setor Saúde e sua verve biomedicalizante, marcado por posições hierárquicas e atos fragmentados e fragmentadores, que se distanciam da perspectiva do cuidado como expansão da vida e da afirmação da diversidade e processualidade das existências.
A aposta maior que cultivei, como via de engravidamento do sentido de meu ofício docente, que pretendo compartilhar onde e sempre que tiver oportunidade: encontro é método. Barbekina diz de encontros com as multiplicidades em mim, que pode engravidar salas de aula.