A Produção do Cuidado nas Comunidades Terapêuticas: Clínica Moral e Conversão.

  • Author
  • Leandro Dominguez Barretto
  • Co-authors
  • Emerson Elias Merhy , Helvo Slomp Junior
  • Abstract
  •  

    As Comunidades Terapêuticas (CTs) para pessoas com problemas no uso de álcool e outras drogas são serviços assistenciais envolvidos em frequentes relatos de abusos e maus tratos. Desde inspeções interinstitucionais, que atestam a presença de torturas e outros tipos de violações, às queixas ou denúncias de usuários/familiares relativos a excessos cometidos nestes serviços em nome do Cuidado. Ao mesmo tempo, observamos iniciativas de gestões públicas em diferentes esferas de governo, para fiscalização, certificação ou capacitação destes serviços buscando superar algumas das queixas e denúncias relatadas. As próprias associações de CTs, como a Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (FEBRACT), buscam definir parâmetros e investimentos para alcançar padrões de qualidade mínimo de suas associadas. Também nos deparamos com autores que consideram os abusos registrados nas CTs como desvios, consequência de serviços de baixa qualidade, passíveis de serem superados com fiscalização e adequação destes estabelecimentos, tomando por base as normativas do Estado brasileiro e as recomendações técnicas que pautam o modelo e método das CTs. Por outro lado, muitos coletivos questionam a factibilidade de reformar as CTs, considerando que mecanismos de supervisão/fiscalização destes serviços apenas legitimam práticas manicomiais. Assim, conduzimos uma pesquisa de Doutorado buscando compreender como o Acesso às CTs pode ser produtor de Barreira para um Cuidado produtor de “mais vida nas vidas vividas”, como afirma Emerson Merhy – compreendido por nós como um Cuidado qualificado – analisando a Produção do Cuidado nestes serviços e as consequancias para seus usuários. Metodologicamente utilizamos a Cartografia, partindo do registro das vivências do primeiro autor em um Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas – participando de atividades de fiscalização, certificação e capacitação de CTs – e como trabalhador de um CAPSad docente-assistêncial, serviço onde foram acompanhados 05 usuários-guia que tiveram experiências com CTs em algum momento de suas vidas. Este pesquisa foi aprovada em Comitê de Ética. Também foi realizada uma revisão bibliográfica no formato de revisão de escopo na fase exploratória da pesquisa. Constatamos junto aos usuários que os relatos de abusos, maus-tratos e mesmo torturas – com castigos físicos – são frequentes, como citado na literatura. Também observamos que as CTs certificadas ou que possuíam algum tipo de fiscalização, tinham menos queixas e menos abandono dos usuários. No entanto, uma das usuárias acompanhadas nos chamou atenção para outras formas de violência, menos evidentes. Em uma CT considerada de boa qualidade, ambiente físico acolhedor, sem imposição religiosa e sem histórico de maus-tratos, Aruana contou que se sentiu maltratada, descrevendo situações de desrespeito, onde a mesma foi julgada e rotulada por não aderir à rotina do serviço, levando-a a abandonar a internação. Outros usuários-guia também relataram sentimentos de desrespeito e humilhação não relacionados a situações de maus-tratos ou violência física, mas ainda assim sentidos como uma agressão. Observamos que o acesso a uma CT implica em uma submissão total aos métodos da instituição. Georges De Leon, um importante autor de referência para as CTs brasileiras e outros países no continente americano, em seu livro “A Comunidade Terapêutica: Teoria, Modelo e Método”, descreve esta submissão incondicional como “Fé Cega”, sendo condição imprescindível ao processo de mudança, objetivo do tratamento. Pesquisas sobre as CTs destacam a “obediência” como importante indicador de recuperação e condição para a mudança. Esta aceitação inquestionável das regras e princípios da CT é tanto meio como finalidade do processo de conversão moral- subjetiva (em algumas instituições também conversão religiosa), resultado final esperado pelo tratamento nas CTs. Assim, as pessoas que questionam ou discordam da proposta da CT são repreendidas e mesmo forçadas a desistir da assistência no serviço, como ocorreu com Aruana. De Leon recomenda diversos tipos de punições aos que descumprem as regras institucionais, dedicando todo um capítulo ao sistema de “privilégios e sansões”, premiando os obedientes e punindo indisciplinados. Apesar de não haver punições físicas, o livro traz recomendações de diferentes tipos de punições baseada em violência psicológica, como pendurar no pescoço uma placa com “um rótulo social (por exemplo, mentiroso, ladrão, manipulador)” referente à infração cometida ou ser proibido de contato verbal com os demais internos. O autor ressalta que a sanção escolhida deve gerar mal-estar suficiente para produzir uma experiência de aprendizagem no indivíduo. Finalmente, constatamos que o modelo de Atenção das CTs, que aposta no Cuidado produzido entre pares como um processo não clínico, é na verdade a prática de uma Clínica Moral, com uma Semiologia para diagnóstico do transtorno ou doença moral, bem como um parâmetro de cura/controle que é a vida moral e subjetivamente convertida. Este modelo compreende que o transtorno moral precede o transtorno por uso de substâncias psicoativas, que só agrava o anterior. Sobre as pessoas que buscam assistência nas CTs com problemas cno uso de álcool e outras drogas, o texto de referência afirma que a “proeminência da mentira, da manipulação e do ato de enganar pode refletir traços de longa data de uma desordem de caráter ou de comportamento que foi significativamente aumentada pelo uso de drogas”. Percebemos que se trata de uma visão que desqualifica a pessoa que necessita de ajuda e a expõe a mais abusos, pois as queixas de um suposto manipulador tendem a ser desconsideradas. Além disso, ser visto a priori como potencial mentiroso/manipulador é uma forma de desrespeito, independente da sua condição de vida. Esta visão do sujeito justifica diversos relatos na literatura ou de usuários-guia, como Piatã, dizendo que sentia-se constantemente vigiado e que os monitores não confiavam nele, inclusive levando a interdições em seu Plano Terapêutico, pois implicava em saídas frequentes do serviço para visitar o CAPSad ou outros serviços de saúde. A literatura de revisão também apontou para a ênfase nas experiências pregressas de sofrimento como método terapêutico, além da orientação terapêutica de não produzir alívio diante de situações de sofrimento relacionado ao uso de drogas, pois a dor é compreendida como uma forma de aprendizado. Esta Cartografia construída com seus diferentes recolhimentos nos apontou, como uma de suas conclusões, para que as práticas de violência física, como privação de comida e outras formas de tortura, presentes frequentemente nas denúncias e inspeções nas CTs, talvez possam ser superadas através de fiscalizações regulares e regulamentação das práticas destes estabelecimentos. No entanto, percebemos que a violência psíquica é parte do Modelo de Cuidado nas CTs, presente em diversos processos e recomendados pela literatura técnica. A exigência por completa obediência, o sistema de punições, a conversão moral, a visão desqualificadora da pessoa, dentre outros, são elementos que Aruana e outros usuários-guia acompanhados, bem como outros usuários e trabalhadores do CAPSad, nos apresentaram como relacionados com opressão, violência ou sofrimento. Desta forma, entendemos que uma real qualificação das CTs só pode ser dar com uma mudança do Modelo de Cuidado, distanciando do que é atualmente recomendado pela FEBRACT e outras associações/coletivos de CTs, com a superação da Clínica Moral e seu tratamento de Conversão.

     

  • Keywords
  • Comunidade Terapêutica; Saúde Mental; Transtornos Relacionados ao Uso de Substâncias; Política de Saúde; Drogas.
  • Subject Area
  • EIXO 2 – Trabalho
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