Apresentação: Dentre as clínicas do trabalho está a Psicodinâmica do Trabalho (PDT), teoria desenvolvida pelo psiquiatra e psicanalista francês Christophe Dejours na década de 1980. Na teoria em questão, há o entendimento de que todas as trabalhadoras e trabalhadores são afetados pela organização do trabalho e podem sofrer e/ou ter prazer diante do trabalhar. Nesse sentido, a presente pesquisa objetiva analisar as vivências de trabalhadores e trabalhadoras da atenção básica em saúde de Belém, verificando os sentidos do trabalho atribuídos por estes profissionais e as repercussões desses sentidos no trabalhar. Desenvolvimento do trabalho: Esta é uma pesquisa de abordagem qualitativa, descritiva e exploratória. A primeira etapa do estudo consistiu na aplicação do método desenvolvido pela Psicodinâmica do Trabalho, que compreende as seguintes etapas: a pré-pesquisa; a pesquisa propriamente dita; a análise da demanda; análise do material da pesquisa; observação clínica; a interpretação e a validação e/ou refutação dos dados. Participaram deste estudo 19 trabalhadores e trabalhadoras de duas unidades básicas de saúde de Belém. Compunham este grupo, 16 agentes comunitárias de saúde, 1 médico, 1 técnica em enfermagem e 1 trabalhadora da limpeza. As unidades foram escolhidas a partir de visitas técnicas a unidades de saúde da cidade feitas em conjunto com uma equipe da Secretaria Municipal de Saúde de Belém. Nestas visitas, a pesquisa foi apresentada e a partir da aceitação da mesma pelos/as trabalhadores/as e da análise da demanda de cada unidade, selecionamos duas unidades. Em geral, as demandas eram de sofrimentos relacionados às condições de trabalho e ao relacionamento entre a equipe. Foram feitos de 4 a 5 encontros quinzenais com grupos de trabalhadores/as de cada unidade que se dispuseram a participar dos grupos. Em cada encontro coletivo, nossa equipe contava com a participação do coordenador do projeto e duas alunas da graduação ou pós. Posteriormente aos encontros, eram feitas análises das transcrições dentro do coletivo da pesquisa com mais discentes da graduação e pós em Psicologia da UFPA. As análises do material foram feitas utilizando a técnica de Análise de Núcleo de Sentidos de Ana Magnólia Mendes. A pesquisa foi devidamente submetida e aprovada pelo comitê de ética em pesquisa por meio da Plataforma Brasil. Resultados: Dentro da perspectiva da PDT e por meio da análise dos discursos das/os trabalhadoras/es, foi possível compreender a experiência e as estratégias destas/es para lidar com o cotidiano do trabalho, ou seja, de que ferramentas dispõem como forma de fazer frente às condições de trabalho impostas, prescritas pela rigidez da organização do trabalho e que por meio da implicação e da sensibilidade de trabalhadoras/es são contornadas para que o trabalho concreto seja realizado, mesmo que para isso seja necessário reajustar algumas determinações e fazer uso de sua criatividade para a realização da tarefa. Para se compreender como ocorre a utilização da inteligência prática e como ocorre a mobilização e articulação dos trabalhadores e trabalhadoras para a modificação de seu trabalho, são utilizados alguns exemplos de relatos extraídos dos grupos de escuta. Entre as vivências trazidas pelas/os trabalhadoras/es, apreendeu-se que a precarização e a infraestrutura sucateada de algumas unidades possuem relação com a saúde mental da equipe, assim como a violência nos bairros em que a Unidades estão situadas. Foi possível perceber o cenário de adoecimento psíquico dos profissionais da atenção básica de Belém-PA. Pois, logo ao adentrarmos no serviço com a proposta de cuidado e escuta dos trabalhadores, foi nítida a inclinação dos mesmos para participarem dos grupos de escuta. Alguns profissionais perguntaram prontamente quando o grupo iniciaria e começaram a relatar vivências de prazer e sofrimento em seu trabalho. Uma das Agentes Comunitárias de Saúde (ACSs) menciona que utiliza como estratégia para melhor atender a população do território a “antecipação” do atendimento médico, visto que a disponibilidade do profissional em questão é reduzida. Como tem ciência dessa realidade, busca realizar a visita para fazer o levantamento das demandas de saúde da população e repassa as informações para que na visita médica o atendimento seja mais “prático e assertivo” e sejam sanadas as demandas urgentes daquela família, principalmente quando se trata de solicitação de exames ou renovação de receitas. Desta maneira, a própria agente comunitária passa a intermediar a relação médico-paciente. Nesse sentido, compreende-se que a escassez de profissionais da área da medicina atuantes nas visitas domiciliares acarreta sobrecarga no trabalho das ACSs e contribui para o sofrimento psíquico destas frente ao real do trabalho. Para o enfrentamento dessa realidade, são desenvolvidas estratégias de defesas por essas agentes, como o apoio mútuo para o mapeamento de demandas da população frente ao baixo quantitativo de médicos; compreendemos que a humanização do trabalho é forma de superação do sofrimento psíquico e da sobrecarga, pois além de cumprir com a responsabilidade atribuída ao seu cargo, garantir saúde à pessoa assistida, também há um sentimento de dever cumprido, associado à ideia de como gostariam de ser cuidadas caso estivessem no lugar do usuário. A falta de amparo e cuidado com a saúde mental também foi pontuada, pois as trabalhadoras e os trabalhadores não têm tanto acesso a meios de cuidado. A Secretaria Municipal de Saúde até oferece um Setor de Atendimento e Valorização do Servidor (SAVS), mas sua equipe é composta somente por duas psicólogas e uma assistente social, quantitativo que não comporta o contingente de servidores. Outro fator relatado é que o reconhecimento dos usuários e dos colegas de equipe. Este é um aspecto que relacionamos com sensações de prazer e os faz prosseguir na profissão. Considerações finais: A PDT declara que o trabalhar é a mobilização subjetiva para encontrar a solução de uma tarefa e contornar os obstáculos que compõem o real do trabalho, ou seja, é o modo como o trabalhador e a trabalhadora fazem o uso de sua inteligência para que um trabalho que foi idealizado seja posto em prática e executado, mesmo com as imprevisibilidades e os contratempos do cotidiano. Desse modo, dentro da perspectiva de trabalhadores e trabalhadoras da atenção básica de Belém-Pa, verificou-se que os sentidos de trabalho dessa categoria são permeados por vivências de prazer e sofrimento, que os fazem enfrentar a realidade apresentada na saúde municipal, tais como: a alta demanda de assistência, o baixo quantitativo de profissionais e as precárias condições de trabalho. Esses fatores contribuem para o sofrimento psíquico dessas pessoas, as quais desenvolvem estratégias defensivas individuais e coletivas de enfrentamento. O papel do grupo de escuta foi o de fortalecer ainda mais os laços laborais destes trabalhadores e proporcionar um local seguro para que as vivências de trabalho e as estratégias de defesa fossem compartilhadas, com o intuito de fomentar o cuidado e atenção para os trabalhadores da área da saúde, que tanto cuidam, mas que pouco são cuidados pela sociedade.