A partir da promulgação da Lei n 10.216 de 06 de abril de 2001, que dispõe sobre a proteção e garantia dos direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, reestruturando todo o modelo de tratamento e assistência em saúde mental, emergiram movimentos importantes em terras brasileiras no processo da luta antimanicomial. Em especial, com a criação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) no ano seguinte, como uma estratégia de desinstitucionalização dos antigos hospitais psiquiátricos. Com o propósito de atender no território e de forma multiprofissional todo e qualquer cidadão usuário do Sistema Único de Saúde (SUS) que esteja em situação de sofrimento psicossocial grave e persistente, seja ele decorrente do uso de substâncias ou não, estes centros hoje subdividem-se para atendimentos específicos conforme o público que atendem, podendo ser adulto (CAPS II), pessoas em uso abusivo de álcool e/ou outras drogas (CAPS AD) e público infanto-juvenil (CAPSij). No recorte deste último, cabe destacar a importância de intervenções de educação e promoção de saúde que considerem a faixa etária desse público e que façam sentido em seu universo cotidiano, incluindo o lúdico e o brincar como parte do processo terapêutico de cuidado. Tendo em vista tais apontamentos, revela-se que este trabalho tem como objetivo relatar e refletir sobre a despatologização, desmedicalização e a desinstitucionalização da infância e da adolescência no âmbito da saúde mental. Trata-se de um relato de experiência que considera as vivências das autoras no CAPSij Sapuca, localizado no município de Sapucaia do Sul, pertencente à região metropolitana da capital gaúcha. Desvela-se que no CAPSij em questão, é possível observar o crescimento exponencial de acolhimentos de crianças e adolescentes cujas queixas principais relatadas pelos responsáveis, ou até mesmo, evidenciadas por encaminhamentos de outros serviços da rede, como Escolas, CRAS, CREAS e Conselho Tutelar, traduzem um suposto desvio comportamental, com enfoque na agressividade, na recusa para com o cumprimento de regras, na agitação exacerbada, na dificuldade de socialização, nas baixas habilidades de controle e expressividade emocional, assim como de lidar com as frustrações. Para além da problematização destes comportamentos, evidencia-se a pulsante demanda por acompanhamento com médico psiquiatra, com vistas ao diagnóstico e à medicação, na expectativa não somente de uma explicação ou justificativa, como também de uma resposta ou solução para os comportamentos apresentados. Isto posto, percebe-se um movimento construído culturalmente em nossa sociedade de associar à doença mental qualquer comportamento desviante do que se almeja e do que se espera socialmente dos indivíduos, o que repercute em uma série de estigmas e preconceitos envolvendo a loucura. No âmbito da infância e da adolescência não é diferente, já que não raramente as crianças e adolescentes que em alguma medida fogem à regra são encaminhados para avaliação e tratamento em um serviço especializado em saúde mental como o CAPSij. Tal conjuntura acaba reforçando a patologização e legitimando o CAPSij como único local e estratégia possível de cuidado para essas crianças e adolescentes, o que por sua vez, corrobora com a institucionalização dos mesmos, indo na contramão dos pressupostos da luta antimanicomial, que enfatiza a importância da reabilitação psicossocial, do exercício da cidadania e do cuidado em liberdade para manutenção da saúde mental e da vida. Assim, compreende-se que o CAPSij acaba assumindo problemáticas que muitas vezes são de uma outra ordem e que envolvem uma série de fatores biopsicossociais, demandando alternativas intersetoriais que considerem o contexto de vida daquele sujeito, família e comunidade. Evidentemente, não podemos negar que o sucateamento das políticas públicas no Brasil, especialmente com os últimos desgovernos de cunho neoliberal e neofascista, fragilizaram ainda mais a rede de proteção da infância e adolescência, fazendo com que de fato não sejam suficientes os espaços comunitários de socialização, convivência e fortalecimento de vínculos, que são fundamentais para que se possa ser criança ou ser adolescente. Tendo em vista esses apontamentos, é possível identificar o quanto a infância e a adolescência vem sendo patologizada, medicalizada e institucionalizada indiscriminadamente. Apesar de já ter completado duas décadas da instituição da reforma psiquiátrica no Brasil, fica evidente que ainda são necessários muitos avanços, sobretudo ao considerarmos os “manicômios mentais” que estão imbricados em cada um de nós e atravessam o modo como nos relacionamos com a loucura e com as doenças mentais enquanto sociedade. Portanto, destacamos como fundamentais a conscientização e o combate aos estigmas que envolvem o âmbito da saúde mental. Assim, podemos apostar numa reforma cultural no pensar sobre o indivíduo dentro da sua subjetividade, visando a quebra da necessidade de patologização e medicalização, assim como do tendencioso julgamento desqualificador e capacitista daqueles em sofrimento psicossocial. Além do mais, compreendemos ser de suma importância para o campo da infância e adolescência que o tratamento de saúde mental não se resuma aos atendimentos no CAPSij, que não raramente acabam se voltando especificamente à doença. É preciso pensar e construir estratégias de cuidado que tenham como foco a promoção da saúde, considerando-a de forma ampliada, ou seja, não apenas focada na ausência da doença mas na qualidade de vida do sujeito em todos os seus âmbitos. Em outras palavras, se faz necessário reforçar que os processos de saúde-doença estão intimamente relacionados com determinantes sociais como acesso à moradia, saneamento básico, educação, transporte, lazer, cultura, esporte, segurança alimentar e outros. Desse modo, e observando que somos indivíduos biopsicossociais, ou seja, que sofremos influência de todos os meios que nos circundam durante nosso processo de desenvolvimento, precisamos garantir ambientes seguros, estimulantes nos aspectos motores, sensoriais, neurológicos e que nos permitam o compartilhamento de tempo de qualidade com outros indivíduos, cujo contato nos permitirá o desenvolvimento de habilidades emocionais primordiais para o autoconhecimento e aprimoramento da inteligência emocional. Compreender os processos de desenvolvimento de cada indivíduo envolve permitir sua experimentação, respeitando suas limitações, desenvolvendo suas potencialidades, garantindo sua liberdade de expressão e espaço para diálogo. Agir sob o ambiente desta criança e adolescente, permitindo-lhe se experimentar como indivíduo em constante desenvolvimento possibilitando um espaço para compartilhamento de suas descobertas pode se apresentar como uma forma simples de profundo impacto na saúde mental do público em pauta. Sendo assim, enfatizamos a urgência na mudança paradigmática do cuidado em saúde mental posicionando a atenção psicossocial como um modelo de cuidado pautado na cidadania, na singularidade, no protagonismo, no cuidado em liberdade e no território. Por fim, salientamos que não temos a pretensão de apresentar fórmulas prontas que se apresentem como soluções milagrosas a todos os problemas que envolvem a saúde mental de crianças e adolescentes, mas convidar à reflexão deste emergente cenário de águas turbulentas, reforçando a urgência em seguirmos remando contra essa maré que insiste em nos afundar nas ondas da patologização, medicalização e institucionalização da infância e da adolescência.