Apresentação: O presente resumo tem por objetivo retratar uma disciplina oferecida com o intuito de promover consciência crítica durante a formação de profissionais de saúde a fim de alcançar equidade em saúde e superar barreiras de preconceito racial, bem como de gênero e sexualidade.
Desenvolvimento do trabalho: Foi elaborada uma disciplina, fruto de um projeto de doutorado intitulada “Decolonizando o cuidado pela perspectiva do gênero da raça e da sexualidade” oferecida para graduandos em Farmácia no primeiro semestre de 2022. A disciplina, de caráter optativo, com carga horária de 30 horas, foi oferecida de modo presencial em encontros semanais de duas horas sendo estruturada seguindo os pressupostos pedagógicos de Paulo Freire. Os encontros semanais com foco na insurgência ontoepistemológica freiriana e na disposição circular dos participantes inspirou ambiente dialógico, uma relação de alteridade entre educador/educando, o debate crítico e a apropriação dos educandos como detentores de conhecimento, diluindo hieraquias de conhecimento com os professores e os autores lidos.
A lógica de alteridade epistemológica permitiu a legitimação das experiências dos educandos como fonte de saber, de debate para a crítica aos preconceitos de raça, gênero e sexualidade. Isso foi fomentado pela abordagem metodológica de pesquisa aplicada no cenário de sala de aula que é baseada nos saberes historicamente compreendidos como saberes subalternos, ou como nos dizem os pensadores contracoloniais, o "saber corporificado" tão disseminado pela ciência construída por feministas negras, como Lélia Gonzales, Glória Anzaldua e bell hooks. Dessa forma foi solicitado aos estudantes que elaborassem reflexões a partir de relatos pessoais inspirados na autoetnografia sobre as aulas e que foram submetidos à análise documental juntamente com as notas de diário de campo. Os relatos eram enviados semanalmente como extensão das reflexões feitas em sala de aula e além disso também foi criado um ambiente de fórum virtual onde os estudantes conversavam e continuavam o debate em sala de aula e postavam textos, notícias, artigos, músicas que dialogavam com os assuntos discutidos.
Resultados: O ambiente de sala de aula foi cultivado desde de sua concepção ontológica até o último dia de sala de aula como ambiente de construção coletiva, diálogo, respeito e solidariedade. Atributos esses que transcenderam a teoria e ganharam corporificação na práxis de ensino-aprendizado como pode ser sintetizado no trecho de uma estudante a seguir: "Me incomodou profundamente a fala de um colega que ao ser questionado sobre sua sexualidade ainda criança por um profissional de saúde, teve seu relato sintomatológico renegado para ser submetido a testagens para DSTs. É impensável para qualquer indivíduo com o mínimo de sensibilidade uma abordagem assim, porém essa abordagem durante o acolhimento no serviço de saúde pública é uma forma de agressão para com o indivíduo que busca atendimento. Descolonizar nesse caso começa pela sensibilidade em perceber cada indivíduo”. (Relato pessoal de uma estudante)
A sala de aula, formada por 55,6% de pessoas que se autodeclararam como brancas, teve uma composição majoritária representativa da Faculdade de Farmácia. Do ponto de vista racial, a Faculdade de Farmácia apresenta uma massiva representatividade de pessoas brancas, quadro bem parecido com o perfil dos estudantes de nível superior no Brasil, onde os estudantes brancos são hegemonia, especialmente em curso da saúde onde o percentual racializado é muito pequeno. Ainda que se olharmos para a população brasileira, em que a maioria das pessoas são negras, elas não estão devidamente representadas no ensino superior, embora com o passar dos últimos anos a participação de pessoas racializadas tenha crescido após a política reparatória de cotas. Paralelo a isso, quando observamos a sexualidade, a sala de aula contava com maioria de pessoas heterossexuais, algo que também é similar ao contexto predominante na Faculdade de Farmácia, bem como no ensino superior do Brasil. O que é relevante assinalar é que apesar de que a composição ser parecida com o contexto hegemônico, a composição dos estudantes era marcadamente diversa sendo composta de 22,2% de pessoas que se autedeclaram homossexuais, 11,1% lésbicas, e 11,1% bissexuais. A mesma diversidade é observada na racialidade onde 22,2% das pessoas se autodeclaram pardas, seguida 11,1% pretas e 11,1% indígenas. Como relatado por vários participantes, o título da disciplina contribuiu para que várias pessoas se identificassem com as temáticas a cerca das identidades racial, de gênero e sexualidade. Mesmo que não conhecessem o termo decolonialidade, o título foi um convite à diversidade: "O título apesar de grande, eu não entendi muito bem, mas conversava comigo, era pra mim". (Trecho de diário de campo - fala de estudante em sala de aula).
A classe social não foi destacada em nenhuma parte da disciplina, nem em textos, ou título, porém é o resultado da confluência das falas que denunciam a violência na saúde, a violência e perseguição policial, situações de extrema vulnerabilidade como a fome, a falta de moradia se convertem invariavelmente nas pouquíssimas pessoas negras que também são as mais pobres dessa sala de aula cuja maioria branca e heterossexual não tem esse tipo de vivência e reforçaram massivamente como importantes todos esses relatos.
Considerações finais: Tal cenário sugere que a formação dos profissionais de saúde deve ser crítica e sistêmica com essas formas de preconceito pois aí a confluência de violências tende a aumentar e, se quisermos agir em prol da equidade e da justiça social, a racialidade deve ser sempre pensada em relação ao gênero, à classe e à sexualidade. Esse olhar requer treinamento e engajamento específico no campo da saúde e da educação que chamamos de letramento sóciocrítico. Através do desenvolvimento do letramento sóciocrítico espera-se que o educando desenvolva competências culturais para olhar as necessidades de cada indivíduo, sem se perder nas superficialidades das especificidades. É um olhar abrangente, mas que ao mesmo tempo sabe filtrar as prioridades, fornecendo um cuidado que seja técnico, mas que acima de tudo seja humano, baseado na realidade e na necessidade material das pessoas. Um olhar que avalie as peculiaridades técnicas, mas que não perca de vista que aquela pessoa tem necessidades humanísticas. Que essas pessoas estão propensas a violências múltiplas e a raça é um fator altamente determinante para se atingir a equidade, bem como o gênero e a sexualidade e estar atento à ocorrência desses fatores ou, pior, da confluência deles é fundamental para alcançar a equidade em saúde e a justiça social. Uma vez que a saúde é um direito de todos e dever do estado, deve ser garantida através de políticas econômicas e sociais tal como estabelece nossa constituição cidadã. Assim, entendemos que o letramento sócio crítico é uma ferramenta importante para alcançarmos igualdade racial, de gênero e sexualidade bem com equidade em saúde e justiça social.