Apresentação:
Recentemente, agendas de pesquisa internacionais indicaram a necessidade de avanços na área da saúde mental infantojuvenil. Entre as demandas de cuidado, destaca-se a atenção à escuta de vozes na infância. Essa experiência pode ocorrer por meio de visões, sensações táteis, gustativas e/ou olfativas que outras pessoas não experimentam, com uma estimativa de ocorrência em 17% das crianças.
Para dar visibilidade a este fenômeno e ressignificá-lo como uma experiência humana, foi criado um grupo de acolhimento para esse público, com a construção coletiva de um material que pudesse contribuir para a vida de outras crianças, adolescentes e famílias que vivenciam experiências semelhantes.
Objetivo: Apresentar a construção do livro infantil As Vozes de Sophia como tecnologia para produção de vida e de cuidado às crianças, famílias e serviços de saúde.
Desenvolvimento:
A construção do livro é um recorte de uma pesquisa narrativa que ocorreu no Rio Grande do Sul, no período de julho de 2020 a setembro de 2021. A produção dos dados ocorreu por meio de um grupo de Auto Mútua Ajuda - AMA, conduzido de forma remota pela plataforma Whatsapp®, por vídeo chamadas coletivas com duração de uma hora a duas horas. Vale ressaltar a experiência da pesquisadora como mediadora do grupo com crianças, uma vez que a mesma tem especialização em Novas Abordagens em Saúde Mental Infantojuvenil e experiência na coordenação de grupos. Os encontros mediaram os diálogos, e entre abril e maio de 2021 foram conduzidos 10 encontros para a escrita do livro, com cinco crianças interlocutoras. Para guiar a discussão e redação, utilizou-se uma personagem fictícia, denominada Sophia, ouvidora de voz. Na condução do grupo era questionado como os interlocutores a imaginavam: suas características, desejos, vontades, rotinas e sua experiência com as vozes. Ao término, como resultado, originou-se o livro: As vozes de Sophia.
Resultados:
O desenvolvimento do material possibilitou que as crianças construíssem a personagem e sua história de forma livre, de acordo com suas próprias experiências. Essa abordagem foi positiva e inclusiva para a construção do material, pois potencializou-se os vínculos entre os interlocutores em um trabalho colaborativo onde cada um protagonizou a escrita, reflexões e seus desejos diante da história. Permitir que as crianças construam histórias e personagens de acordo com suas experiências promove a criatividade e a expressão cultural, além de reconhecer e validar diferentes experiências que as crianças trazem consigo.
Ao promover essa liberdade criativa, as crianças têm a oportunidade de se verem representadas de forma mais autêntica e significativa nas histórias. Esse tipo de abordagem participativa é especialmente importante para crianças que ouvem vozes, pois pode influenciar positivamente suas perspectivas para a vida futura. Os insights criativos ao longo do processo também permitiram uma atenção personalizada para cada uma das histórias individuais das crianças.
Outrossim, essa abordagem promoveu empatia e entendimento entre as crianças participantes do grupo, já que elas puderam compartilhar suas próprias experiências e aprender sobre as experiências dos demais de maneira atenta e inclusiva. Nesse sentido, os membros do grupo desenvolveram um senso de comunidade ao estarem juntos em um espaço seguro.
No contexto específico da criação de uma personagem que ouve vozes, essa abordagem facilitou para que as crianças construíssem suas próprias histórias e refletissem sobre suas identidades, explorando de forma positiva suas experiências. Isso contribui para a redução do estigma e do preconceito, permitindo a aceitação das diversas formas de ser e estar no mundo.
A criação do material permitiu às crianças a construção de uma personagem com características próximas às suas próprias histórias de vida e, por conseguinte, ressignificar situações. Por isso, essa tecnologia de cuidado se apresentou como uma importante ferramenta de inclusão e respeito mútuo. Esses aspectos foram essencialmente importantes, pois a experiência de ouvir vozes tende a ser desconsiderada e marginalizada.
Percebeu-se que as crianças desenvolveram senso de coletividade e empoderamento ao longo das discussões do grupo, além de aumentarem sua auto estima ao se perceberem autoras não somente do livro, mas da própria história de vida. Outro destaque é o fato das crianças terem suas histórias validadas e reconhecidas, uma vez que existe uma estigmatização em torno de pessoas que ouvem vozes, além de uma atividade criativa foi um processo de auto expressão e auto determinação, ao observarmos o processo de criação ficou claro o quanto esta abordagem foi enriquecedora e transformadora para todos
A criação do livro infantil também permitiu o fortalecimento dos vínculos com os familiares, pois facilitou a compreensão das experiências das crianças em torno da escuta de vozes, proporcionando uma oportunidade para as mães se aproximarem da temática de forma acolhedora e descontraída.
Desse modo, a proposta de permitir que as crianças construam uma personagem e sua história de forma livre e autêntica é uma forma valiosa de propiciar cuidados, fortalecer vínculos e apoiar a saúde mental das crianças interlocutoras. Ao criar espaços seguros para o compartilhamento de ideias e a expressão de necessidades, validando esses aspectos, abre-se a possibilidade de benefícios duradouros que repercutem ao longo da vida das crianças.
Espera-se ainda que o livro possa servir como uma ferramenta educacional para a sensibilização e compreensão da temática dos ouvidores de vozes nas diferentes comunidades e serviços de saúde.
O Livro As Vozes de Sophia é uma tecnologia para a produção da vida e cuidado de crianças, adolescentes e famílias, oferecendo também aos profissionais de saúde a possibilidade de trabalhar com uma lógica de cuidado mais humana e compassiva.
Considerações finais:
Por intermédio da construção do livro, foi possível observar a potência de vida de cada interlocutor ao se implicar na atividade. Nota-se a potencialidade da atividade lúdica para incentivar a criatividade, a expressão de emoções, a compreensão da própria história de vida e a ressignificação do fenômeno de ouvir vozes, constituindo uma alternativa de cuidado que atua na assistência em saúde mental em liberdade, em contraste com a psiquiatria convencional. Para o futuro, espera-se que esta atividade de uso do livro integre o cuidado em saúde mental na rede de atenção à saúde, continuando a avançar nas prioridades estabelecidas pelas agendas internacionais.