Este trabalho trata-se de um relato de experiência do Projeto Corpo Escuta: Oficinas de Dançaterapia e Expressão Corporal como estratégia de redução de danos no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas – CAPS AD III, localizado no município de Pelotas – RS, no período de abril de 2022 a março de 2023.
Corpo Escuta foi idealizado a partir da perspectiva de práticas corporais, inspirado essencialmente na Dançaterapia de María Fux. A Dançaterapia foi idealizada e criada na década de 60 pela bailarina e coreógrafa argentina María Fux. Em seu percurso, por meio de materiais e ideias, criou uma forma de dançar a partir da improvisação do movimento corporal, promovendo integração emocional, física e social. Ao afastar-se de abordagens tradicionais e institucionais, María compreendia a dança como possibilidade de perceber os caminhos do movimento considerando as singularidades e subjetividades de cada pessoa, independente de diagnósticos ou estigmas.
Por que Corpo Escuta? "Corpo Escuta" foi pensado e criado a partir de outro conceito de escuta: uma escuta sensível do corpo. Uma escuta que se faz no silêncio, no sentir, na observação, no mergulho interior. Escutar é reconhecer-se em todas as expressões subjetivas, é a forma mais sensível de se conectar ao seu próprio universo e, ao mesmo tempo, a um universo completamente diferente: o outro. Por isso, através dessa escuta sensível, a proposta foi a criação de um espaço para experimentar um sentir/mover diferente: um dançar para desanestesiar sentidos, explorar o corpo e o movimento corporal, criar outros modos de existência.
Nesse sentido, o projeto Corpo Escuta teve por objetivo desenvolver encontros para explorar diferentes formas de pensar e sentir a dança, a expressão e o movimento corporal, compreendendo que essas linguagens são produtoras de subjetividades e potencializadoras de novas formas de ser, criar, fazer, se relacionar, habitar o mundo. Subjetividades que, aos poucos, foram sendo anestesiadas pela complexidade de histórias de vida de pessoas que passaram anos em uso / abuso de substâncias psicoativas, em situação de rua, vulnerabilidade social, de abuso, violência e processos de adoecimento relacionados, sobretudo, à saúde mental.
As oficinas eram coordenadas por uma Agente Redutora de Danos, Enfermeira com especialização em Dançaterapia Método María Fux e contava com a colaboração de seu colega, também Agente Redutor de Danos, o qual desempenhava um papel essencial na organização e condução das oficinas. Juntos, os agentes redutores criaram um espaço seguro e acolhedor para expressão das emoções por meio do movimento corporal. Esse trabalho com o apoio da coordenação e equipe do CAPS AD III, permitiu a construção de uma rede colaborativa, garantindo e facilitando o desenvolvimento das oficinas terapêuticas nesse serviço de saúde mental.
As oficinas aconteciam uma vez por semana, com duração de uma hora e trinta minutos cada encontro. Eram oferecidas aos usuários que faziam acompanhamento no CAPS AD III, no primeiro atendimento e posterior em reunião de equipe para definição do Plano Terapêutico Singular. Os grupos eram abertos, as pessoas poderiam participar dos encontros a qualquer tempo, respeitando o limite máximo de participantes, vinte pessoas. A coordenadora do projeto planejava detalhadamente cada encontro, utilizando recursos artísticos, educacionais e terapêuticos da dança. O mais valioso era a experimentação do corpo por meio da arte, práticas de consciência e expressão corporal, improvisação do movimento e dançaterapia.
Cada encontro planejado era dividido em três principais momentos:
Sensibilização: momento para relaxar, desacelerar e entrar em contato com o próprio corpo. Nesses momentos eram utilizados recursos como músicas relaxantes instrumentais aliadas a técnicas de meditação, respiração e automassagem, visando facilitar as práticas de consciência corporal.
Desenvolvimento: em cada encontro era trabalhada uma temática diferente relacionada a vida, utilizando palavras-chave interligadas ao tema proposto. Nesse momento, eram utilizados também materiais e elementos criativos como: tinta, fitas coloridas, papéis, tecidos, balões, plumas, imagens projetadas, materiais para desenhar e escrever etc. As proposições eram focadas em dança e movimento.
Finalização: momento para encerrar o encontro com uma proposição mais sensível e relaxante ou um momento mais divertido para descontrair. Após a finalização das propostas de práticas corporais, era sugerido uma roda de conversa aberta para fechamento do encontro, abrindo espaço para os participantes falarem sobre o que foi vivenciado.
A dança era compreendida, pelos participantes, como um ato de resistência a tudo aquilo que silenciava e enrijecia os corpos que foram socialmente invisibilizadas por muito tempo. Cada passo, cada gesto, era um grito de esperança que, encontro após encontro, inspirou e possibilitou a (re) afirmação da liberdade de expressão, a expansão das capacidades criativas, das potencialidades, além da exploração e ampliação de repertórios de movimento, utilizando todas as janelas do corpo.
No decorrer dos encontros alguns desafios surgiram como a resistência inicial em colocar o corpo em movimento, por outro lado, ao longo do percurso, alguns participantes descreveram as oficinas como uma importante ferramenta no auxílio da diminuição dos sintomas de estresse e ansiedade, bem como de prevenção ao risco de recaída. A dança permitiu, portanto, o reconhecimento de um corpo potente em movimento, expressando-se de maneira a aliviar as tensões física e mental, proporcionando uma sensação de relaxamento e bem-estar.
Além disso, os participantes descreveram a importância de uma maior reconexão com seus corpos e da reconstrução da autoestima e autoimagem, uma vez que enfrentavam uma desconexão consigo devido a experiências traumáticas relacionadas a contextos de uso abusivo de substâncias psicoativas.
Outros relatos importantes foram relacionados ao compartilhamento de experiências semelhantes relacionadas ao uso/abuso de substâncias psicoativas, promovendo a sensação de pertencimento e apoio mútuo. Assim, foi possível testemunhar o desenvolvimento de uma relação mais saudável com seus corpos, destacando a importância da escuta e do acolhimento como uma base sólida dos encontros.
Nesse sentido, Corpo Escuta se estruturou em um espaço de acolhimento, autocuidado e cuidado coletivo a partir do encontro entre: corpo, arte e movimento. Aqui se fala, novamente, em uma escuta sensível do corpo, uma imersão em si através da investigação dos movimentos e criação de circuitos de sensações no próprio corpo, permeado pelas nuances do mundo, da vida e das emoções. E essa construção se deu também no coletivo, no "junto com", uma vez que essa escuta permite uma conexão mais profunda e uma compreensão mais abrangente das necessidades e sentimentos do outro, produzindo significados que transcendem crenças e expectativas.
Os encontros se constituíram muito além da experiência estética das artes do corpo. Este espaço, idealizado e construído coletivamente, se estruturou em uma obra de arte dançada, um refúgio para partilhar sonhos, quebrar paradigmas e cultivar o poder transformador da dança, do toque, do olhar, do abraço. Lá, onde as vozes se aquietavam, os gestos falavam. Ali, o corpo ressurgia e, com ele, a coragem de viver, de ir em busca dos potenciais escondidos em cada movimento, de dançar como processo de reconstrução, renascimento e reinvenção de si.
Dessa forma, o Projeto Corpo Escuta evidenciou o potencial das abordagens não convencionais, como as práticas corporais, para complementar abordagens clássicas em centros de atenção psicossocial. O legado deixado por esse trabalho no CAPS AD III durante esse período é uma amostra do valor das estratégias inovadoras para abordar o uso de substâncias psicoativas, e das possibilidades que surgem ao promover um espaço de respeito, criatividade e apoio mútuo.