O racismo no Brasil é um fenômeno estrutural, que surge a partir do processo colonial que subjugou, escravizou e inferiorizou povos, territórios e culturas a partir de seus meios de produção. As estruturas do racismo no Brasil perpassam as instituições de forma homogênea e uniforme, mantendo a hierarquização da dominação, que perpetua através de práticas e comportamentos discriminatórios, seja através do pacto da branquitude e/ou do racismo institucional. Igualmente, na saúde, o racismo institucional é fonte primária de discrepâncias no que tange a possibilidade de seu acesso pela população negra, sendo um dos principais determinantes sociais da saúde para esse coletivo.
Nos espaços acadêmicos, a violência racial aloja-se nas salas de aula, por meio da lógica do poder e da negligência, tornando esse, um ambiente frutífero para disseminação de discriminações e para o adoecimento físico e mental dos estudantes. Diante desse contexto, torna-se necessário citar a forma como a população negra encontrou no aquilombamento, possibilidade de resistência às opressões. Sendo esse movimento, responsável pela construção de uma rede de apoio necessária para a manutenção da esperança, por trocas de experiências, pela discussão de temas negligenciados, pelo aprendizado de habilidades sociais e pela estruturação de possibilidades de luta.
Nesse sentido, na união desses estudantes, nasce uma fonte importante para a possibilidade de mudanças institucionais, uma vez que, unir-se de forma cultural e afetuosa ou, até mesmo, politicamente, em torno de objetivos comuns pela busca de direitos para a população negra, já rendeu inúmeras conquistas no passado, como, por exemplo, a criação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Dessa forma, atualmente, o aquilombamento, dentro dos ambientes universitários, torna-se uma maneira de promoção de enfrentamento às dificuldades impostas pelo racismo estrutural, colaborando com a permanência estudantil de um modo mais saudável.
Considerando os aspectos mencionados anteriormente, é evidente a necessidade do desenvolvimento de trabalhos que ilustram esse processo, tanto para expor seus benefícios, quanto para dar luz a uma temática negligenciada em diversos âmbitos no campo acadêmico. Portanto, o objetivo deste relato de experiência é compreender a importância do aquilombamento como mecanismo de permanência estudantil, a partir da promoção de saúde mental, identificação cultural e reafirmação política. Dessa maneira, será relatada a experiência de uma Liga Acadêmica de Saúde da População Negra no ambiente acadêmico, em uma universidade do sudeste.
Trata-se de um relato de experiência elaborado por seis estudantes negros da área da saúde de Instituições de Ensino Superior (IES) diferentes. O relato reflete as experiências no período de abril/2023 a abril/2024. O cenário do estudo são os cursos de medicina e enfermagem de duas IES. A formulação desse relato passou pela análise dos documentos da liga: documentos oficiais de criação, atas das aulas, reuniões e ações de extensão.
Além do mais, foi realizado resgate mnemônico por meio do método da escrevivência, metodologia aplicada às experiências de grupos silenciados, que valoriza o compartilhamento da subjetividade e possibilita reconstrução de narrativas autênticas e representativas. Por fim, foi realizada análise crítica e organização dos conteúdos, com finalidade de estabelecer adequado encadeamento das ideias propostas.
O ambiente que estrutura os chamados cursos da saúde, é constituído majoritariamente por docentes e discentes brancos, que auxiliam, por vezes, na perpetuação e reforço de estereótipos racistas. Sendo assim, esse, um espaço danoso e violento para com corpos negros, que são sistematicamente ignorados e marcados por estigmas. Nesse sentido, é válido expor o impacto do racismo científico, sistema altamente sofisticado e tecnológico, no desenvolvimento de pesquisas e da educação.
Diante desse cenário, em 2021, foi construída uma Liga Acadêmica de Saúde da População Negra, em uma universidade do sudeste, a partir de articulações discentes e docentes, com o intuito de combater a perpetuação do racismo tanto dentro da instituição de ensino, quanto nos serviços de saúde, e promover discussões e estudos de abordagens clínicas, situacionais e/ou subjetivas voltadas à população negra.
A liga ancora nos eixos pilares do ensino superior: Ensino, Pesquisa e Extensão. No ensino, desenvolvido por meio de reuniões quinzenais com os ligantes, alunos de diferentes períodos e áreas de atuação na saúde, são abordados temas viabilizadores do aprendizado de condições clínicas, sociais e culturais e seus impactos na saúde da população negra. Transcendendo o espaço de reflexão/aprendizado, a liga dedica-se a ser um local de acolhimento, tornando seus encontros, espaço de reafirmação identitária e de troca de experiências mútuas entre estudantes.
No âmbito da extensão, o grupo desenvolve ações diversas em um quilombo da região sudeste. O projeto conta com ativa participação dos ligantes e da coordenação, e, se baseia, em uma troca mútua de vivências e conhecimentos com a população quilombola. O objetivo da extensão proposta, nada tem a ver com a imposição do conhecimento acadêmico à comunidade, mas, sim, com uma escuta ativa por parte dos estudantes, das demandas apresentadas pela população. Assim, são realizadas inúmeras atividades, como: rodas de conversa e palestras por profissionais da saúde, a fim de que haja uma troca de conhecimentos e saberes.
Nesse sentido, os ligantes aprendem sobre o dia a dia do quilombo, os saberes tradicionais, sua dimensão cultural e espiritual, e passam a entender efetivamente o impacto do processo de aquilombamento em suas vivências pessoais e de toda a comunidade. Por fim, na Pesquisa, é contextualizada uma visão racializada para a introdução científica, permitindo, por meio da construção coletiva, a realização de trabalhos acadêmicos entre ligantes.
Diante desse contexto, entende-se o processo de aquilombamento como um instrumento pungente de resistência e luta. Sendo este, baseado no compartilhamento coletivo de narrativas autênticas e representativas, vivenciadas por grupos historicamente negligenciados. Assim, diante de um meio acadêmico negligente, locais de acolhimento como a liga apresentada neste estudo, representam espaço para uma cura mútua de feridas e mudança institucional.
Resultados
O aquilombamento é um mecanismo de resistência negra, que foi expresso durante grande parte da história brasileira, representando a força dessa população na busca por mudanças. Assim, sua concepção extrapola bolhas ao refletir bem o que significa a união de grupos menores em busca de direitos e mudanças estruturais. Nesse contexto, a presente liga desenvolve em cada um de seus eixos, a possibilidade do aquilombamento entre seus ligantes, para assim, garantir que um meio opressor, o ambiente acadêmico, não impeça, por vias patogênicas, discriminatórias e/ou físicas, a permanência de estudantes negros nas IES.
Dessa forma, a liga permite uma potente troca de afetos, experiências e subjetividades, ao se colocar como uma verdadeira rede de apoio para seus ligantes. Visando para além de uma busca pelo cuidado, a criação de um espaço acadêmico, que discuta e planeje estratégias para combate ao racismo e seus impactos na saúde de pessoas negras. Assim, utilizando-se do mecanismo de aquilombamento, estudantes resgatam ideais de valorização, identidade e ancestralidade.
Conclui-se que o aquilombamento é um mecanismo altamente estruturado na história da luta negra e expresso através da experiência vivenciada pela liga acadêmica supracitada, que se constrói como um ponto de resistência na universidade. Sendo assim, fundamental na constituição da permanência estudantil, promovendo espaços de discussões racializadas e trocas de experiências para o combate ao racismo institucional e estrutural. Além disso, a liga proporciona emancipações de forma coletiva permitindo a liberdade e a dignidade diante de um sistema que oprime outras possibilidades para o presente e futuro.