Apresentação: A atenção à saúde mental é um processo em desenvolvimento, no qual evidencia-se o modelo psicossocial, o qual defende o desprendimento das práticas baseadas em procedimentos, consultas e a medicalização da vida, para composições terapêuticas que permitam a promoção de vínculo, empoderamento e a reinserção social dos usuários. Dessa forma, dentro da possibilidade de atenção às populações vulneráveis, espera-se ampliar o cuidado por meio do movimento de saída das unidades de saúde e ocupação dos espaços da cidade. Nesse processo, considera-se o afeto, a escuta ativa e a amorosidade como importantes para a construção do vínculo interpessoal. Os usuários dos serviços de saúde mental, especialmente os que frequentam os Centros de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas (Caps-Ad), são uma população suscetível a recorrentes discriminações e exclusões, estando expostos a um forte estigma social e à privação de direitos. Nesse sentido, foi proposta uma prática extramuros, no modelo de grupo de caminhada em um Caps-Ad da fronteira Oeste do Rio Grande do Sul, a fim de superar preconceitos, oportunizar a sociabilidade e a cidadania, fomentando o cuidado em saúde mental. Objetivo: Relatar as experiências de implementação de um grupo de caminhada, com usuários de um Caps-Ad na fronteira Oeste do Rio Grande do Sul. Desenvolvimento do trabalho: Trata-se de um relato de experiência de dois residentes do Programa de Residência Integrada Multiprofissional em Saúde Mental Coletiva em diálogo com usuários, equipe, tutores e preceptores sobre a implementação do grupo “Caminhada de Pertencimento”. As atividades estão sendo desenvolvidas desde março de 2024, duas vezes por semana com duração de uma hora. Foram realizados oito encontros até o momento, com a participação de seis pessoas em média, em cada. A prática é iniciada pela Profissional de Educação Física e/ou pelo Enfermeiro (ambos residentes), a atividade está aberta para que equipe multiprofissional como psicólogos, artesãs e o oficineiro, participem da caminhada. A primeira tarefa é a escolha coletiva do local a ser visitado. Cabe destacar que, a necessidade dessa atividade foi verificada por meio do diagnóstico situacional do serviço, no qual observou-se que parte dos usuários sentiram-se constrangidos em frequentar determinados espaços da cidade. Nesse cenário desenvolveu-se uma prática extramuros para estimular o cuidado em saúde de dentro do serviço, para o território, compartilhando recortes dessa vivência em uma perspectiva mobilizadora sobre o direito de pertencer. Resultados: Através da caminhada, foi possível trabalhar habilidades socioemocionais, por meio da mediação do pertencimento em pontos da cidade antes inacessíveis a eles, e através do estímulo à expressão de sentimentos e sensações durante esse processo. A proposta se materializou com a ocupação da cidade, através realização de passeios e atividades desenvolvidas em espaços comunitários. Durante o trajeto eram provocados momentos de contemplação e reflexão. Ao chegar no local escolhido, encorajava-se a produção de uma narrativa reflexiva-afetiva por meio da fala, escrita, desenhos ou mapas falantes, para traduzir o que estavam sentindo naquele momento. No retorno ao serviço, os registros das produções foram arquivados, para serem revisitados de tempos em tempos, a fim de acompanhar o percurso criativo de cada usuário e do coletivo. Foram introduzidas ações de mobilização para a reflexão sócio emocional e afetiva em relação a si e ao ambiente urbano. No primeiro encontro usuários, residentes e um oficineiro realizaram uma atividade dentro do serviço, devido a chuva, momento em que todos puderam pensar quais os locais da cidade costumam usufruir. Com isso, foi proposta a confecção de um "monstro orientado" com uma palavra que expressasse os sentimentos experienciados nos espaços sociais "proibidos" a eles. Dessa forma, foi possível nomear e ver aquilo que mais assusta, ou se esconde nos pensamentos, fragilizando o poder de agir de cada um. Os demais encontros no espaço interno do Caps-Ad, utilizaram-se das reflexões e vivências oriundas das caminhadas como recurso de espelhamento da experiência. A orla do Rio Uruguai, foi o local escolhido por mais de uma vez; talvez esse local se configure como mais permeável à existência desses usuários, por se localizar em uma região mais periférica da cidade, uma vez que neste espaço surgiram relatos de desconforto em frequentarem espaços centrais, especialmente os privados. Essa narrativa encontra ancoragem no movimento de distanciamento dos transeuntes ao se depararem com a presença do grupo nos espaços da cidade durante as caminhadas, evidenciando-se a prevalência do estigma associado a suas imagens. Em outro encontro ocupou-se Concha Acústica, localizada em uma das praças centrais da cidade, onde ocorrem shows públicos ao ar livre. Alguns usuários trouxeram memórias desse espaço, seja dos eventos ou da itinerância realizada por eles em dias pouco movimentados, como recurso para sair de casa. O teatro municipal também foi visitado pelo grupo e na ocasião foi possível conhecer a história e explorar a infraestrutura. Todos foram convidados a subir no “palco da vida” e refletir sobre a sensação de estar naquele local. Palavras como realização e admiração foram utilizadas por eles ao verem-se no palco. Uma emoção de alegria tomou o grupo ao final da atividade, que se experimentou em uma dinâmica de improviso desempenhada por todos. O último fragmento de memória trazido aqui relata a vivência do grupo em uma praça na área central da cidade, quando os participantes relataram não conseguir se ver entrando naqueles espaços, descrevendo suas roupas como pouco elegantes, e manifestando o receio de serem proibidos de circularem em estabelecimentos privados, apesar do desejo de frequentar esses ambientes. Até o momento, verificou-se que a única fragilidade dessa proposta, está relacionada ao receio dos usuários em reduzir o tempo de permanência na ambiência do Caps-Ad, geralmente aquecido por momentos de socialização com mate (bebida típica gaúcha). Considerações finais: Percebeu-se essa proposta como uma prática viva e vivenciada por cada participante de maneira singular, na qual pode-se observar que há indivíduos mais abertos que outros tanto para itinerância pela cidade como para os diálogos afetivos e reflexivos durante a própria caminhada. Simultaneamente, apesar do incentivo à ocupação desses espaços, na narrativa dos usuários encontrou-se discursos de incompatibilidade entre a imagem e a estética rígida imposta pela vida urbana higienista que cria aversão e inconformidade entre alguns corpos e vestimentas, reprimindo o acesso à vida na cidade, seus cafés, restaurantes e praças, reforçando a importância da superação desse hiato. Essa percepção constitui uma conquista do projeto, no qual ao olhar para um prédio tombado ou uma rua cheia de lojas, pode-se pensar se todos já puderam acessar verdadeiramente esses locais. Assim o grupo de caminhada torna-se uma ferramenta promotora de saúde mental, ativadora dos sentimentos de pertencimento à Cidade por parte dos usuários do serviços. Esse caminhar para pertencer envolve um mapeamento de possibilidades de existir e resistir traçando um percurso de desenvolvimento pessoal em que outras possibilidades se tornem viáveis a eles como: estudar, se recolocar no mercado de trabalho, e estarem em pleno gozo de seus direitos e deveres, como cidadãos em meio ao espaço urbano.