"Bebel quer ser mãe!": um casal-guia que vive nas ruas usuários de um CnaR no norte do Paraná

  • Author
  • Gabriel Pinheiro Elias
  • Co-authors
  • Maria Eduarda Romanin Seti , Stela Mari dos Santos , Luiz Gustavo Duarte , Maira Sayuri Sakay Bortoletto
  • Abstract

  • Apresentação: O presente trabalho versa sobre o cuidado em saúde de pessoas que vivem na rua, assim como as implicações da biopolítica na produção desses cuidados, de um município no norte do Paraná. A literatura acadêmica, ao discorrer da temática de pessoas que vivem na rua, comumente converge para discussões de que se trata de um fenômeno de desigualdade social que reflete em uma população em contexto de moradia irregular de caráter heterogêneo e, também, com vínculos familiares fragilizados e/ou rompidos. Assim, diante de pessoas que expressam modos de vida singulares e diversificados enquanto viventes de rua, o Sistema Único de Saúde (SUS) possui os Consultórios na Rua (CnaR) como um dos dispositivos que buscam prestar assistência e articular o cuidado em saúde voltados às necessidades de seus usuários. Para tanto, o CnaR trabalha com equipes multiprofissionais compostas por profissionais da enfermagem, psicólogos, assistentes sociais, médicos e educadores sociais de forma itinerante com atendimentos realizados na rua - in loco. Acontece que, mesmo diante da perspectiva de um cuidado humanizado que considere a autonomia do usuário, há de se discorrer acerca da biopolítica que traz como as relações de poder presentes em nossa sociedade operam, muitas vezes de forma sutil, no âmbito de gerir e controlar populações. Ou seja, suas implicações em profissionais da saúde costumam resultar em uma busca pelo controle do desejo do outro em seus modos de vida distintos, adotando uma postura verticalizada por um suposto saber-fazer o cuidado de forma mais legítima. O objetivo deste trabalho foi cartografar uma vivência sobre o cuidado em saúde junto a um casal-guia que vive na rua referenciado ao CnaR. Desenvolvimento: A abordagem cartográfica busca retratar paisagens psicossociais em um entendimento de que, modos de existência, também se constituem em territórios advindos da subjetividade desejante das pessoas, que estão em constante movimento. Dessa forma, a cartografia busca dar voz a esses desejos que vão aparecendo nos afetos causados pelos encontros. Destarte, foi realizada uma imersão em campo, o CnaR do município, na perspectiva do pesquisador in-mundo, ou seja, de mergulhar na rotina do serviço aberto as implicações afetivas dos encontros com os usuários. Nessa pesquisa, foi utilizada a ferramenta do usuário-guia, que consistiu em elencar um usuário do CnaR a partir das afetações vividas em seu encontro que, comumente, giravam em torno de um tensionamento com o serviço na busca pela produção do cuidado em decorrência da complexidade do caso. Assim, buscou-se caminhar junto ao usuário e conhecer seus caminhos na produção do cuidado para além das ofertas institucionais. Essas afetações foram discorridas em diário cartográfico e, posteriormente, elaboradas em contos. Resultados: É com a expressão frio na barriga que descrevi, em meu diário cartográfico, o sentimento inicial da imersão em campo, no CnaR. Minha expectativa estava permeada por entrar em contato com viventes de rua repletos de histórias de violência e rompimento de vínculos. No entanto, logo em meu primeiro dia, um encontro pôs essas expectativas água abaixo: com um casal que vive na rua! A equipe do CnaR propôs se deslocar para atender um casal, Bebel e Agostinho (nomes fictícios), que estavam ficando durante o dia na fachada de uma pizzaria. Dentre as ofertas de atendimentos ao casal, uma era a injeção contraceptiva de Bebel a qual se buscava realizar naquele dia. Ao chegar no local, nos deparamos com o casal embaixo das cobertas. A equipe gentilmente bate palmas para acordá-los - o que, a princípio, imaginei que causaria incômodos ou um mal humor típico que sinto quando me acordam. Mas, foi o contrário! Bebel se levantou com um baita sorriso no rosto ao ver a equipe no maior dos bons humores! Já Agostinho logo se levanta para ir buscar café da manhã para todos. Enquanto isso, ficamos conversando com Bebel sobre a vida e suas demandas em saúde - toda risonha, ela solicita à equipe uma nova bombinha de asma. Para além disso, quando a equipe aproveita para ofertar a injeção contraceptiva, ela a recusa trazendo que está com o desejo de ser mãe! Ao dizer isso, tanto eu quanto aparentemente a equipe inteira se mobilizou em desconforto questionando: mas, o contexto de viver na rua seria adequado para se desejar um filho? A postura que assumimos foi de imediata tentativa de dissuasão do desejo do casal orientados, em especial, por uma ótica de que o modo de vida na rua é atravessado exclusivamente por mazelas. Para minha surpresa, Bebel, de forma risonha e bem humorada, tencionou a equipe ao oposto - ela ofertou uma série de potencialidades sobre seu modo de vida nas ruas. Já na casa dos 30 anos de idade, Bebel disse que vive nas ruas desde seus oito anos. Sim, ela referiu um histórico de rompimento de vínculos familiares que traz certo sofrimento emocional, mas não é isso que orienta seu modo de vida. Me peguei em um dilema: afinal, se ela vive nas ruas desde criança, porque soa inadequado que ela vislumbre constituir sua família ali, com seu companheiro, à sua maneira? De imediato soube que estava diante do meu casal-guia cuja complexidade do caso se dava justamente pela potência que tinham em viver nas ruas e não pelos desafios que meu imaginário remete a seu modo de vida. Esse encontro me afetou de tal maneira que passei a questionar minha própria forma de existir: sou mais feliz vivendo dentro de meus quatro muros em uma rotina orientada pela neurose de pagar boletos? Ou o contrário? Esse dissabor vai além quando me questiono se a postura enquanto profissional de saúde seria a mesma diante uma jovem, sem filhos, fora do contexto de viver na rua, trazendo não desejar ser mãe e, para tanto, buscar por uma contracepção cirúrgica, por exemplo. Ao realizar a análise dessas afetações, me vi pego por uma ânsia de controlar o desejo daquele modo de vida respaldado num suposto papel de profissional da saúde que traz o que é adequado ou não. Com isso, ficou evidente uma captura no meu agir enquanto trabalhador de se utilizar de meu papel não para necessariamente produzir cuidado, mas sim o controle e normatização de um modo de vida em si - a biopolítica. Considerações finais: A partir da auto análise das afetações vividas junto ao casal-guia que vive na rua, propiciada pela cartografia sentimental, foi possível perceber como as relações de poder se mostraram presentes em minha atuação. Isso porque, por mais que eu estivesse ali, ciente de meu papel em uma política que prega a produção de cuidado em respeito à autonomia e necessidades de seus usuários, percebi que meu agir estava orientado por um controle de um estilo de vida respaldado no suposto saber-fazer saúde mais legítimo. Com isso, esse casal-guia me levou a conhecer um outro território onde viver na rua não denota, necessariamente, uma existência orientada por restrições - também é repleta de potencialidades. Esse trabalho não busca amenizar os desafios e possíveis violências de quem vive na rua, mas apontar que, não refletir sobre nossa atuação enquanto profissionais de saúde, pode nos levar a uma prática orientada pelo controle do outro. Ou seja, orientada pela violência que o próprio sistema produz diante outros modos de vida - e não por suas potencialidades.

  • Keywords
  • Pessoas em Situação de Rua, Atenção Primária à Saúde, Integralidade em Saúde
  • Subject Area
  • EIXO 2 – Trabalho
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