Desde os primórdios, o ser humano que ocupa a terra vem realizando transformações significativas no planeta. A expansão das cidades, alteração das formas de habitar, adensamento populacional, industrialização, expansão da agricultura de exportação, extração de minérios, de petróleo, construção de estradas e mega empreendimentos, tudo é feito supostamente para garantir maior conforto, qualidade e facilitar a vida da espécie humana na terra. Porém, o que vemos historicamente, principalmente com a expansão do capitalismo, é que todas estas alterações favorecem cada vez mais uma pequena parcela da população mundial, que lucra com estas formas de exploração, em detrimento de outras vidas de todas as espécies. As alterações provocam o desaparecimento de plantas, de animais e desequilibram os ciclos e o clima do planeta.
Não é de hoje que escutamos que esta forma de viver vem esgotando a terra e que um dos efeitos destas alterações devastadoras são bruscas alterações climáticas. Redução de florestas, extinção de biomas, desaparecimento de espécies. A temperatura na terra já subiu 1,5 ºC acima da média registrada na era pré-industrial produzindo efeitos climáticos em diferentes países, em intervalos cada vez menores. Secas, enchentes, furacões, se avolumam provocando migrações, mortes e vulnerabilidades. Associado a estes eventos temos o uso indiscriminado de agrotóxicos contaminando a terra e o alimento, construção de barragens, contaminação dos rios e morte dos peixes, extração do petróleo produzindo um combustível que vai matando gradativamente o planeta.
O Rio Grande do Sul é banhada pelo Guaíba, muitos rios e lagoas cruzam, embelezam e alimentam nosso território. A população da capital e partes da região metropolitana, cresce observando o pôr do sol do Guaíba, considerado um dos mais bonitos do país. As águas nos proporcionam múltiplas oportunidades: fluem as mercadorias, pessoas em barcos à vela coloridos. Ancorados nos gramados da orla os gaúchos tomam mate, andam de bicicleta, namoram, passeiam ou simplesmente se deixam ficar. Na água flui a vida.
Mas em 27 de abril de 2024 um evento climático de grande magnitude precipitou uma chuva que provocou enchentes e devastação em diversos municípios do estado e, o que era motivo de prazer, virou um tormento que se converteu em um dos maiores desastres climáticos que o RS já viveu, superando a enchente de 1941, sendo considerado um dos maiores do Brasil até o momento. Dos 497 municípios gaúchos, 473 foram afetados e os danos envolvem mortes, desaparecimento de pessoas, destruição, desalojamento massivo e muitas perdas materiais e simbólicas. As enchentes se espalharam e vieram migrando do norte até o sul do estado, deixando um rastro de destruição, lutos, perdas e tristeza. Os rios transbordaram, as margens se romperam e a geografia dos territórios se alteraram significativamente. Muitas pessoas foram retiradas as pressas de suas casas, milhares de pessoas tiveram que ir para abrigos ou para casa de parentes. Serviços de todas as ordens se viram afetados e o próprio deslocamento de pessoas impossibilitado pela queda de pontes, destruição de estradas, quedas de barreiras e interdições de várias rodovias, inclusive por alagamentos. Um caos se instalou no RS, sendo transmitido quase que em tempo real pelas mídias. Com os serviços de saúde não foi diferente: muitos alagados, outros tiveram sua força de trabalho reduzida pela impossibilidade de muitos trabalhadores chegarem ao seu local de serviço. Os gestores das três esferas e a sociedade civil se uniram em uma grande corrente de ajuda ao RS.
O Fórum Gaúcho de Saúde Mental (FGSM) que é movimento social é uma destas entidades que se uniu na luta e no trabalho de recuperação e elaboração do processo que ainda estamos e seguiremos vivendo. O FGSM desde sua fundação, sempre lutou pela vida em liberdade para todes as pessoas! Junto a Rede Nacional Internúcleo da Luta Antimanicomial, combatemos qualquer forma de preconceitos e discriminação, lutando pela cidadania de todas as gentes. Historicamente, denunciamos as violações de direitos das pessoas psiquiatrizadas e usuários de drogas, trabalhando para a construção de uma rede de serviços substitutivos aos manicômios e por políticas públicas que permitam o viver em cidadania. Ao longo de nossa caminhada fomos adotando novas bandeiras,pois percebíamos novas formas de estigma e preconceito contra as pessoas. Abraçamos uma postura de denúncia e luta contra as violências de gênero, de classe e de raça/cor. Somos antimanicomiais, antiproibicionistas, antiracistas, antisexistas, anticriminalistas.
Estamos desde o primeiro dia das enchentes do RS atuando em diferentes frentes de apoio aos afetados. Alguns como voluntários nos abrigos montados para acolher a população, dialogando com trabalhadores dos diferentes serviços e municípios afetados, apoiando a construção do plano de gestão integral de riscos e desastres, na construção de planos terapêuticos singulares, no compartilhamento de informações e troca de experiências através de webnários. Mais recentemente o FGSM criou um espaço de escuta e troca entre trabalhadores que estão na linha de frente, pois estes são diretamente afetados pelo evento e pela reverberação da gestão da crise na micropolítica do trabalho. As falas são intensas, as trocas são preciosas. Os relatos atestam que, em meio à crise, os espaços de cuidado vão se organizando. Inovações vão sendo propostas: frente a redução de efetivo, duplas de trabalhadores vão a campo com um colega dando suporte no remoto; nos abrigos, arranjos internos e construções de divisórias de papelão fabricando casas! Elaboração de materiais, notas técnicas; tentantivas de reterritorialização; municípios afetados por 3 enchentes seguidas em menos de um ano se organizam para a busca ativa de usuários que viraram migrantes climáticos e uma série de aprendizados que precisam ser escutados e valorizados. Abrir espaço para que o vivenciado possa virar experiência comunicável e distensionar a pressão do vivido. Mas também, o espaço de acolhimento se configura como espaço político de construção de cidadania na luta por cidades mais sustentáveis, por um outro modo de habitar o planeta.
Defender a vida é, em última instância cuidar de todo o planeta. Só existe vida na terra com sustentabilidade, equilíbrio, respeitando todas as formas de vida e a diversidade de espécies presentes nos territórios, inclusive as populações humanas. Desta forma o FGSM alerta que as emergências climáticas impactam de forma devastadora nos modos de viver e habitar o planeta, produzindo sofrimento à todos, mas afetando mais significativamente as populações mais vulneráveis. Não há saúde mental se existem emergências climáticas cada vez mais devastadoras. Precisamos urgentemente rever as formas de ocupação de nossas cidades, repensar a produção de bens e inclusive as formas de produção na agricultura, optando por modos de produção sustentáveis e em diálogo respeitoso com as outras formas de vida na terra. A vida pede passagem em meio e com as águas! O cuidado em saúde mental da população atingida, produzido nestas diferentes cidades, a partir da coletivização de experiências entre os profissionais da linha de frente, pode produzir alinhamento das ações do poder público, criação de práticas inovadoras e podem propulsionar a criação de políticas públicas específicas para situações de emergências e desastres, além de orientar com eficácia os recursos emergenciais para enfrentamento dos impactos da tragédia.
Neste sentido, este trabalho apresenta um relato de experiência do FGSM, a partir de narrativas dos encontros com os trabalhadores da linha de frente em saúde mental nos municípios atingidos, apresentando as demandas, as experiências compartilhadas e os encaminhamentos surgidos neste grupo.