Apresentação: Desde antes da chegada dos portugueses ao Brasil em 1500, as comunidades tradicionais que já estavam com sua ancestralidade vinculada ao território do então novo continente, praticavam o aborto através do uso de uma combinação de chás e plantas medicinais para inviabilizar o feto quando este não era desejado pela mulher ou aldeia. Foi com a chegada das missões jesuítas que a prática passou a ser repudiada, porque ia em confronto com os preceitos católicos de preciosidade da vida e interpretação do aborto como assassinato. O que acorreu durante essa época foi uma doutrinação forçada dos povos indígenas sob o regime do catolicismo, com muitos sendo assassinados por padres ou bandeirantes e outros tantos trabalhando em regime similar à escravidão. Toda essa prática, chamada posteriormente de catequização, tratou-se de uma descaracterização da figura desses povos para enquadrá-los no modo de vida e costumes europeus, pondo de lado a sua individualidade cultural. Mesmo que atualmente esse fato seja reconhecido e repudiado como colonização, os preceitos europeus e católicos mantiveram-se enraizados enquanto a sociedade brasileira evoluía, aborto e eutanásia ainda são vistos como tabus e pouco discutidos socialmente, uma vez que a maioria da população e muitos profissionais trazem consigo um preconceito religioso que os impede de trabalhar esses temas de forma objetiva. Dentro da enfermagem, o tema ainda é muito sensível, porém os meios acadêmicos tentam fomentar a discussão pautada na ciência para discutir a eficácia da prática do aborto para o paciente. Nesses momentos, vemos que grande parte dos profissionais reconhecem o possível benefício para o planejamento familiar e autonomia da mulher na decisão da continuidade da gestação ou não, além dos casos em que a criança é indesejada. Para que discussões como essa sejam possíveis dentro das diferentes esferas políticas da sociedade brasileira, primeiro é preciso vencer o preconceito religioso que gera entraves para a livre discussão de temas relevantes à coletividade.
Desenvolvimento: O aborto consiste na interrupção da gravidez antes que o feto consiga sobreviver fora do útero. Dentro da legislação brasileira, a prática é permitida em casos de estupro, feto anencéfalo ou se a continuidade da gestação resultar em risco de vida à gestante. Além desses casos, muito discute-se sobre o uso do aborto como método contraceptivo, o que acontece em outros países como Argentina e Canadá, possuindo locais que realizam o procedimento e legislações próprias delimitando a idade gestacional máxima para realização. Mesmo existindo divergências, teóricos acreditam que a vida começa não com a fecundação do embrião, mas sim após a terceira semana, quando o feto já possui uma aparência humana, ou então após o terceiro mês com o desenvolvimento do sistema nervoso. Essa incerteza sobre quando pode-se considerar o feto como um ser vivo também permeia as questões sobre o aborto, visto que para alguns a prática é considerada um homicídio, em especial para as vertentes religiosas. Entre os profissionais da enfermagem, a mesma dúvida reside, com uma parcela sendo contrários ao aborto por considerarem a fecundação já como o início de uma nova vida, enquanto que outros acreditam que a vida por si só inicia após a viabilidade do feto, visto que nesse intervalo inúmeras intercorrências podem ocasionar um aborto espontâneo. Para aqueles favoráveis à técnica, há um consenso sobre a necessidade de estudos e delimitação de uma idade gestacional limite para o procedimento, a padronização do serviço e uma rede de apoio psicológico após a realização, visto que ainda há chances de uma mulher decidida a abortar desenvolver depressão após submeter-se ou então desenvolver uma gravidez psicológica. Pensando sobre a conduta do enfermeiro, o código de ética defende as crenças particulares e permite ao profissional se afastar do procedimento, desde que outro o realize em seu lugar e não deixe a mulher desamparada. Com isso, compreende-se que o aborto transpassa as questões político-religiosas e deveria retratar-se de uma escolha individual, visto os impactos para o corpo feminino.
Resultados: Apesar do aborto ser criminalizado, é de conhecimento para os profissionais da atenção básica que muitas mulheres o fazem de forma clandestina ou por conta própria, resultando em sequelas permanentes e até óbitos. Dessa forma, condenar a prática e evitar discutir sobre ela devido a um preconceito religioso não resolve a real situação, na qual pessoas que possuem recursos financeiros recorrem a profissionais que realizam abortos ilegais, enquanto que mulheres em situação de vulnerabilidade e sem condições de sustentar um filho optam por meios físicos ou farmacológicos para induzir o fim precoce de sua gravidez, pondo em risco sua vida. O diálogo sobre o aborto ainda concentra-se nas esferas universitárias e políticas, não estando presente na população em geral, os usuários do serviço de saúde que poderiam beneficiar-se da prática.
Considerações finais: O preconceito religioso sobre o aborto impede que as discussões a cerca da prática alcancem a população que poderia ser beneficiada. De nada adianta debater os benefícios entre as elites ou meios acadêmicos quando as comunidades que usufruem do sistema de saúde não têm sua opinião representada ou valorizada. A fim de viabilizar esse debate, é papel do enfermeiro como agente em contato com os usuários da atenção básica pesquisar e levantar o tema em rodas de conversa, uma vez que mesmo com a proibição da prática por interesse particular, o planejamento familiar e a decisão sobre dar continuidade a uma gravidez ainda recaem sobre a família ou a mulher então gestante, visto que esta passará por todas as mudanças psicofisiológicas decorrentes de uma gravidez. Não adianta continuar criminalizando uma medida contraceptiva ainda usada de forma ilegal por muitos cidadãos como alternativa a uma gestação não desejada, forçar com que a mulher dê continuidade é impor a ela uma condição de vulnerabilidade socioeconômica muitas vezes, visto que mesmo os programas assistenciais demonstram-se poucos para sustentar uma criança, ou então sujeitar o recém nascido a uma família que não lhe proverá o afeto necessário. As discussões político-religiosas não deveriam ser pautadas sobre como abortar se assemelha ao homicídio, mas sim sobre como prover às mães que desejam dar continuidade à gravidez uma rede de apoio e condições para então criar essa criança, uma vez que a maioria tem medo de levar em frente a gestação por dificuldades financeiras encontradas enquanto tenta sustentar a si própria, pondo em risco o desenvolvimento de um novo ser humano.