Um dos maiores infortúnios no que tange o Brasil é o abuso infantil. Em 2023, através do canal de telecomunicação disque 100, das 430 mil denúncias, 228 mil (53,14%) são referentes à violência contra crianças e adolescentes, com um total de 1,3 milhão de violações de direitos humanos. O presente estudo, tem como objetivo identificar os principais aspectos orofaciais indicativos de maus-tratos infantis, a negligência odontológica frente a isso, e a conduta legal do cirurgião-dentista diante destes. Foi realizado uma revisão de trabalhos publicados nas bases de dados da Scielo, PubMed, Brazilian journal of Development, Revista Cathedral, Google acadêmico, utilizando palavras-chaves como "Child abuse", "oral health", "Dentist", "legal".
Maus-tratos infantis incluem todos os tipos de abuso e negligência de uma criança com menos de 18 anos por um dos pais, cuidador ou outra pessoa na função de custódia, por exemplo clérigo ou professor, que resulte em danos, potencial para danos ou ameaça de danos a uma criança.
O abuso infantil se configura no ato de praticar maus-tratos a uma criança, alude o abuso físico que é quando uma criança é vítima de lesões ou correu risco de ser agredida, seja por queimaduras, queimaduras por cigarro, chutes, socos, entre outros, o abuso emocional, que pode conduzir a disfunções emocionais, humilhação e rejeição, e o abuso sexual que inclui acariciar as genitais de uma criança ou fazer ela acariciar as de um adulto, exploração sexual, estupro e exibicionismo. Enquanto a negligência infantil se configura como abandono ou falha em suprir as necessidades emocionais e físicas básicas de uma criança.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que regulamenta o artigo 227 da Constituição Federal, define as crianças e os adolescentes como sujeitos de direitos, em condição peculiar de desenvolvimento, que demandam proteção integral e prioritária por parte da família, sociedade e do Estado. Assim como, o Estatuto da criança e do adolescente dispõe no seu artigo 5°, que "Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais". Contudo essa realidade ainda se encontra distante, já que milhares de crianças e adolescentes sofrem violência no seu cotidiano, principalmente em seus lares e por responsáveis que deveriam protegê-los.
Maus-tratos infantis ocorrem geralmente dentro do domicílio, sendo que alguns fatores que aumentam o risco de abuso infantil são etilismo, uso de drogas, desemprego e pais que sofreram abuso infantil ou sofrem com estresse pessoal. O cirurgião-dentista consegue acompanhar de perto a criança e a família durante o atendimento odontológico, tendo um contato mais estreito e direto com o paciente, podendo executar além de um exame clínico, uma análise de comportamento. Ademais, a atuação do cirurgião-dentista é critica quando se trata de identificar abuso infantil, já que a literatura demonstra que cerca de 70% das vítimas de abuso infantil apresentam lesões na cabeça, face e boca.
As crianças que sofrem abuso podem parecer cansadas ou com fome, ter má higiene, apresentar lesões físicas ou emocionais, ou podem não apresentar sinais óbvios de abuso.
Evidências de possível abuso físico e suas manifestações orofacias incluem:
Dentes: Fraturas, deslocamentos, avulsionados ou com mobilidade, múltiplas raízes residuais sem história plausível que possa esclarecer sua lesão.
Lábios: Hematomas, equimose queimaduras ocasionadas por cigarro ou bebidas quentes, indicativos da utilização de mordaça, cicatrizes nas comissuras, arranhões.
Boca: lacerações no freio labial ou lingual causados por sexo oral forçado, alimentação ou beijos. lacerações ou queimaduras na gengiva, assoalho da boca ou palato ocasionadas por objetos quentes ou alimentos. Múltiplas lesões em vários estágios de cura.
Mandíbula ou maxila: Fraturas, má-oclusão resultantes de trauma anterior, É importante se atentar para lesões que competem regiões próximas da cavidade bucal como: hematomas por enforcamento, hematoma periorbital, lesões não consistentes com a explicação relatada pelo responsável, marcas de cinto, alopecia.
Evidências indicativas de abuso sexual: equimose de sucção no pescoço, marcas de mordida, laceração dos freios lingual e labial, petéquias palatinas, eritemas ou hematomas indicativos de felação. Infeções sexualmente transmissíveis como gonorreia, condiloma acuminado, sífilis e herpes.
Negligência odontológica e diagnóstico
Uma saúde bucal adequada envolve cuidados básicos de higiene oral, como visitar o dentista uma vez por semestre e escovar os dentes regularmente. É possível constatar crianças negligenciadas se durante o atendimento odontológico forem identificados sinais como cáries rampantes não tratada, depósitos de placa e cálculo, higiene oral domiciliar inadequada, sangramento ou trauma afetando a região orofacial são indicativos de negligência por parte dos pais ou responsáveis.
Por mais que muitos ferimentos traumáticos não sejam causados por maus-tratos, é importante que o cirurgião-dentista suspeite deles, observando o relacionamento entre a criança e o seu responsável durante a consulta. É essencial que o diagnóstico não seja restrito apenas a existência de lesões, quando há a suspeita de abuso, é importante abordar o atendimento com naturalidade durante a anamnese e executar exames complementares que possam auxiliar no diagnóstico e sustentar uma denúncia de abuso. No caso de houver discrepância entre os achados clínicos e história relatada pelo responsável e criança, se possível, a criança deve ser separada do responsável e questionada novamente. Caso seja viável, registrar em qual período o abuso ocorreu e quantas vezes, além disso, identificar qual foi o mecanismo e instrumento usado para praticar a injúria, como mãos, fio, cinto, cigarro.
Conduta profissional
O profissional deve documentar tudo de forma apropriada, incluindo anamnese, exames complementares, mecanismo de agressão e fotografias no prontuário odontológico. O abuso infantil pode ser notificado por escrito, pessoalmente ou telefone, de forma anonima ou não. No caso de suspeita, deve-se notificar o Conselho Tutelar da respetiva localidade, e na falta do Conselho Tutelar, comunicar ao Juizado da infância e da Juventude. Deixar de notificar a suspeita de abuso é configurado omissão por parte do profissional, e está sujeito à penalidade, como consta no artigo 245 do Estatuto da criança e Adolescente: "Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente. - Pena - multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência". Se o cirurgião-dentista estiver com dúvidas a respeito de realizar a denúncia, ele pode consultar colegas profissionais no assunto, médico do paciente, e autoridades locais.
Considerações finais
O abuso infantil afeta milhares de criança no Brasil todo o ano. O cirurgião dentista desempenha importante papel pois devido sua área de atuação tem a possibilidade de intervir e identificar sinais de possíveis abusos e negligência infantil. A conduta dos cirurgiões-dentistas deve ser baseado em ética e comprometimento com o bem-estar da criança, fazendo uma boa anamnese, documentando todas as informações e notificando as suspeitas de abuso. Apesar disso, muitos cursos de graduação em odontologia não dão um destaque e embasamento forte quanto a identificação e conduta frente a casos de maus-tratos infantil, assim temos profissionais com incerteza quanto suspeita de abuso e medo de perder pacientes. Contudo a segurança da criança é prioridade, sendo dever do cirurgião-dentista identificar e denunciar casos de maus-tratos infantil.