Apresentação: Trata-se de um relato de experiência resultante da imersão dos discentes de Medicina - vivência em território - em uma Unidade da Atenção Primária em Saúde (APS) do Sistema Único de Saúde (SUS). Tal imersão objetiva o conhecimento da dinâmica do funcionamento da Unidade, os serviços oferecidos às demandas dos usuários desses serviços, bem como as relações que se estabelecem com esses usuários no cotidiano do atendimento. Dentro desse contexto, conhecer o entorno da Unidade de Saúde - a comunidade e o espaço que ela habita - também integra as ações realizadas nessa imersão. Assim, o território com sua paisagem e amplitude, o ambiente com seus contrastes e harmonias e as interações que nele se operam, configuram-se também como aspectos importantes a serem observados durante essa imersão, uma vez que se articulam diretamente com o processo saúde-doença. Este trabalho destaca, portanto, parte da imersão realizada na comunidade a partir da percepção do igarapé lá existente, claro exemplo de poluição e agressão ambiental, produto do descaso do poder público. Desenvolvimento: A cidade é Manaus, a comunidade é no bairro de Santo Agostinho, situado na Zona Oeste da cidade. Este trabalho configura-se como um espaço de conhecimento, reconhecimento e reflexões sobre a identidade do Igarapé, ao retratar a supressão que os igarapés sofrem em Manaus, onde escorrem lentamente entre ruas, vielas e habitações, sem reconhecimento ou cuidado, mas que outrora abrigava uma cultura, hoje silenciada, às suas margens. Os participantes são oito alunos de medicina da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) envolvidos em aulas práticas de Saúde Coletiva III. Estes alunos são acompanhados pela preceptora docente, com a Agente de Saúde Comunitária responsável pela microárea como mediadora na comunidade. Dessa forma, os participantes caminharam na extensão visível do corpo hídrico dentro do bairro Santo Agostinho, a fim de verificar as taxas de poluição e, adicionalmente, sua influência na proliferação e na transmissão de arboviroses no espaço vicinal. Constatou-se que o Igarapé encontra-se delimitado, estreito, degradado, enquanto o entorno urbanizado cresce indiferente à degradação - como uma semiologia do domínio da natureza pela Urbanização desordenada, sem a chance de desenvolvimento sustentável. Pesquisas realizadas no âmbito da UFAM atestam para o fato de que os igarapés existentes em Manaus “eram mananciais de vida e beleza que há décadas atrás ainda faziam parte do cotidiano populacional”. A cidade passou por profundas transformações durante o período áureo da borracha (1862-1900) período este em que houve forte impulsionamento da economia local com um processo de urbanização que direciona a extinção de alguns igarapés, sendo estes substituídos por ruas e avenidas durante a chamada Belle Époque. Desse modo, ao longo de décadas e em correspondência às transformações sociais, econômicas e políticas pelos quais passou a cidade de Manaus, marcadamente com o impactante período da economia da cidade - a implantação da Zona Franca de Manaus - observou-se a ocupação desordenada das margens dos igarapés na área urbana de Manaus por pessoas que migraram do interior do Amazonas para Manaus em busca de melhores condições de vida e de trabalho e que, ao chegarem na cidade, não tinham onde morar. Tal condição vulnerável aliada à falta de saneamento básico e de investimento em educação ambiental pelo Poder Público produziu essa triste realidade ao longo da história da cidade e que hoje se vivencia de forma já banalizada, naturalizada e aceita - a degradação dos igarapés de Manaus sendo o Igarapé do Franco apenas um exemplo dessa situação de degradação ambiental. Resultados: A situação anteriormente descrita, tomando como referência o Igarapé do Franco, revela, a partir de nossa breve imersão na comunidade onde o mesmo está situado, importantes aspectos a serem refletidos, especialmente no que concerne aos determinantes sociais de saúde. Essa ocupação desordenada no leito e entorno dos igarapés não apenas impacta negativamente nesses recursos naturais, como também aumenta a proliferação de doenças, especialmente as de veiculação hídrica. Este problema potencializa-se durante a temporada de chuvas na cidade de Manaus, quando as inundações são rotineiras e os igarapés -poluídos pelo despejo de lixo e dejetos- se tornam focos de contaminação adequados para a proliferação de agentes etiológicos de diversas moléstias. As pessoas moradoras dessas casas estão, portanto, bastante vulneráveis às doenças de pele, diarreias, verminoses, hepatite e leptospirose, entre diversas outras doenças. Durante nossa presença na Unidade Básica de Saúde cujo Igarapé do Franco encontra-se em seu entorno, orientações individuais e palestras educativas em grupo na sala de espera são constantemente realizadas para o combate às arboviroses, especialmente a dengue. Com esse mesmo objetivo, equipes de agentes de saúde percorrem as ruas e os domicílios do bairro orientando quanto à limpeza dos quintais, os cuidados com vasos de plantas, pneus e outras vias de acúmulo de água e sujeiras. Nesse mesmo espaço geográfico e de relações sociais, o Igarapé do Franco está lá, agredido, sujo e devastado, anunciando a contradição. Considerações Finais: Este relato de experiência, vivenciado pela imersão na Atenção Primária do SUS de Manaus e na sua comunidade de entorno fortaleceu em nós, discentes de medicina, a compreensão da força que tem os determinantes sociais de saúde no processo de adoecimento e de cura. Saúde e Doença não são categorias isoladas, mas produtos de múltiplos determinantes sociais, econômicos, políticos e culturais. Contribuiu também com o entendimento dos processos históricos e instigou o necessário olhar para o passado, para melhor compreendermos o nosso presente e fazermos escolhas mais lúcidas no futuro. Finalizamos com a ilustrativa afirmação do grande escritor uruguaio Eduardo Galeano: “A História é um profeta com o olhar voltado para trás: pelo que foi e contra o que foi, anuncia o que será.”.