O fenômeno contemporâneo de medicalização da vida se remete à ideia de algo que “tornou-se médico”, vinculado ao exercício da medicina ou mesmo do cuidado por meio de medicamentos. No entanto, este termo se refere a um fenômeno social complexo e que não deve ser compreendido em sentido único e universal. Porém, de modo geral, se refere à apropriação dos modos de vida humana pela jurisdição médica. Nesse sentido, Foucault afirma que a medicina moderna, desde o século XVIII, se apresenta como uma estratégia biopolítica usada pelo Estado para o controle e a gestão não somente dos corpos individualmente, mas de todo o corpo social, definindo padrões de normalidade. Neste cenário, em que a lógica biomédica impera, desafios se apresentam ao cuidado no campo da saúde mental. Em especial no que refere à ampliação da classificação de comportamentos humanos diagnosticados como transtornos mentais a serem medicados. Mesmo com a ampliação dos serviços de atenção psicossocial, a centralidade do cuidado na prescrição de psicofármacos é uma realidade que persiste. A aliança entre o saber-poder médicos e a indústria farmacêutica tornam ainda mais desigual e assimétrica a relação de forças com a luta antimanicomial e os direitos humanos de usuários de saúde mental. Este estudo busca lançar luz neste cenário e desnudar facetas e forças que tensionam este campo. Deste modo, realizamos uma pesquisa cartográfica com base na experiência com o Guia de Gestão Autônoma da Medicação (GAM) em um Centro de Atenção Psicossocial localizado em Fortaleza/CE, como estratégia a apontar caminhos de ampliação do cuidado e que resgatem a cidadania, o protagonismo dos usuários e deslocamentos na micropolítica do trabalho e educação no citado serviço de saúde. O Guia GAM tem sua origem na província de Quebec no Canadá na década de 1990, fruto de mobilização de movimentos sociais que lutavam por tratamentos alternativos à lógica biomédica. Em 2010, foi realizada uma pesquisa multicêntrica para tradução, validação e adaptação à realidade brasileira, o Guia GAM-BR. Composto por seis passos, com perguntas elaboradas de forma a promover a problematização do uso de psicofármacos e oportunizar aos usuários diálogo sobre suas experiências com medicamentos entre seus pares e sua equipe de referência, numa perspectiva de gestão do cuidado de forma compartilhada. Entendemos que cuidado e formação caminham juntos, deste modo, apostamos como objetivo investigar as práticas de cuidado e suas implicações nos processos de trabalho que se revelam na experiência de um grupo de Gestão Autônoma da Medicação (GAM) em um Centro de Atenção Psicossocial no município de Fortaleza/CE. Pautados nos pressupostos da pesquisa cartográfica, numa perspectiva de acompanhar processos e que rompe com o método tradicional cartesiano em seus dualismos sujeito-objeto, conhecer-fazer. Inspirados nesta perspectiva, iniciamos a imersão no campo em junho de 2023. O primeiro momento da pesquisa envolveu a apresentação da proposta à gestora e aos trabalhadores do serviço especializado em saúde mental, o trabalho de sensibilização dos usuários do referido serviço substitutivo, oportunidade em que apresentamos um breve histórico da GAM, o guia, seus passos e metodologia. Nesta fase da pesquisa também foram pactuados os detalhes de como se processariam os encontros, definido então com frequência semanal, com duração média de 1h30min, no decorrer de um ano e meio. Iniciamos o grupo efetivamente em setembro de 2023. Compõem o grupo GAM o pesquisador, uma psicóloga e uma enfermeira da equipe de profissionais do serviço e dez usuários, sendo cinco do sexo masculino e cinco do sexo feminino com diagnósticos de depressão, transtorno afetivo bipolar e esquizofrenia. Os temas e discussões que emergem das conversas no grupo são registrados em diário de campo após cada encontro. Estes registros são desdobrados em narrativas e postos em discussão em supervisão e no grupo de pesquisa. O grupo tem o guia como um disparador das conversas, mas são vários os momentos em que situações da atualidade da vida em movimento são motes para as conversas. O grupo tem se mostrado como um espaço potente de fala, de escuta e de partilha. Que de certo modo, tem sido a alternativa a uma realidade que se impõe de uma demanda bastante superior às ofertas no cotidiano do serviço. Não tardou e logo os participantes se perceberam constituindo uma grupalidade com laços de confiança, como disse uma participante “eu vou falar aqui pra vocês uma coisa que nunca tinha tido coragem de falar pra ninguém”. Organização pelo grupo da comemoração dos aniversariantes do mês, que para alguns foi a primeira de toda uma vida. Partilha de dores de ordens diversas: a incompreensão da família, a perda do emprego após o diagnóstico, os sintomas persistentes mesmo com uso do psicofármaco, dificuldade de acesso ao atendimento pelos profissionais especializados, em especial ao profissional médico. A experimentação com o grupo GAM tem trazido efeitos importantes não só aos usuários, mas também às profissionais participantes. Estas passam a revisitar suas verdades acadêmicas, muitas vezes prescritivas do que é melhor para o outro. Passam a se experimentar em um lugar, muitas vezes não confortável, de perceber que prescrições desvinculadas da vida, sem escuta e legitimação do vivido pelos usuários do serviço, são inócuas. A caminhada coletiva e partilhada no grupo GAM, tem disparado descolamentos importantes no caminhar a vida dos participantes e demonstra sinais que estão reverberando na gestão do cuidado pela equipe do serviço. De modo a repensarem a lógica de cuidado centrada na medicação, no atendimento individualizado em detrimento do grupal, no reconhecimento do protagonismo dos usuários na gestão do cuidado. A experiência com o grupo GAM segue em processo, mas podemos apontar alguns analisadores: 1. Modelos e práticas de cuidado em suas contradições e tensões; 2. Relações com a família e experiências de desamparo e solidão; 3. Efeitos dos medicamentos na vida cotidiana. De modo geral, a análise preliminar dos resultados nos permite afirmar que o compartilhamento de experiências com medicamentos psiquiátricos tem possibilitado deslocamentos e inventividades. Além disso, o grupo GAM tem oportunizado maior acesso à informação aos usuários sobre seus direitos, sobre a medicação e seus efeitos, ampliado a rede de apoio, ensejado mudanças nas relações de poder ao serem pautadas no diálogo, promove maior participação dos usuários em seus tratamentos e na composição de territórios existenciais outros. Deste modo, a GAM se mostra como dispositivo potente na reafirmação das diferenças e na produção de vida em liberdade no campo da saúde mental.