Apresentação
Em dezembro de 1999, ocorreu no Estado Vargas o pior desastre socioambiental da história da Venezuela, causado por chuvas torrenciais que geraram inundações de córregos, rios, arrastamento de sedimentos, pedras e fluxos torrenciais, com gravíssimas consequências de morte e destruição. Experiência traumática que ainda continua gerando aprendizados para insistir na necessidade do pensamento crítico quando falamos do próprio cuidado emergencial em saúde mental.
Relaciono esse acontecimento hoje com o que aconteceu agora, em 2024 no Rio Grande do Sul, Brasil. Ambas são catástrofes de grandes dimensões, onde se evidencia a grave crise climática que o planeta atravessa, associada com um modelo civilizatório que pouco considera formas de urbanizar cuidadosamente os nossos territórios.
O cuidado às tantas pessoas afetadas por essas crises resulta em inúmeros aprendizados. Na Venezuela, mesmo sem uma formação extensa, fizemos um grande trabalho, especialmente porque a intervenção em crises não foi tão socializada em contextos tão massivos e repentinos. Foi a força dos acontecimentos que nos levou a esse lugar de aprender-fazendo a partir dos nossos sofrimentos e dos demais. A arte foi a nossa grande aliada.
O objetivo desta narrativa é compartilhar a experiência de uma abordagem coletiva das crises climáticas e das emergências decorrentes no âmbito da interface da saúde mental e da arte.
Contexto
Durante anos vivi de perto a experiência do atendimento emergencial em saúde mental porque morei lá no estado de Vargas e trabalhei como psicóloga da universidade mais importante daquela região (Universidade Simón Bolívar). Nessa tragédia, estima-se que cerca de 3.000 pessoas morreram ou desapareceram e 200.000 foram deslocadas em menos de 3 dias. A resposta do Estado foi muito fraca no início. Era a data da votação eleitoral e isso distraiu ou negligenciou os entes governamentais e a própria população. As medidas não foram tomadas a tempo, somente houve ações muitas horas depois, quando a tragédia já tinha adquirido dimensões catastróficas.
Desde o primeiro momento em que a emergência foi declarada, ativei meus conhecimentos em Psicologia Social e trabalhei em ações participativas com abordagens de crise voltadas para toda a população afetada. Isto incluiu atenção aos numerosos grupos de voluntários(as) que também vieram nos apoiar.
Esta experiência tem muitos elementos e arestas, mas, nesta narrativa gostaria de destacar a importância da organização de redes de apoio às próprias redes de cuidado e atenção em emergência. A coordenação da mobilização social é um ponto chave, devido ao caos que se gera quando ocorrem catástrofes desta magnitude e a população transborda psicoemocionalmente. Implica uma rápida socialização de saberes, com a inserção de estratégias criativas de enfrentamento para a contenção e organização da população afetada.
Levar em conta esse tipo de experiência pode nos permitir hoje a construção de espaços de apoio e de acompanhamento mútuo entre países, com estratégias inovadoras de conscientização social, destacando a importância de uma abordagem integral das emergências socioambientais por meio da arte. A crise não é facilmente enfrentada com recursos “convencionais”; requer muita criatividade devido à massividade do seu impacto.
Nesse contexto, as terapias criativas também estão possibilitando ampla participação social para evitar a “patologização da tragédia” e converter redes de apoio em saúde coletiva, que inclui a implantação, desde o início da crise, de uma plataforma colaborativa para o cuidado do cuidador durante o atendimento emergencial.
Proponho pararmos na reflexão sobre a importância de usar as artes, as terapias criativas e a educação popular para abordar a natureza traumática da experiência, em contraposição ao discurso da “enfermagem” que, por vezes, domina as ciências da saúde nas intervenções de crises e destacar a transformaçao social e cultural, a partir dos saberes coletivos mesmo em contexto “catastrófico”.
Descrição da Experiência
Durante os primeiros dias da tragédia de Vargas, em 1999 foi gestada uma rede de apoio psicológico liderada pela Universidade Central da Venezuela, onde tinha me formado muitos anos antes. Esta Rede foi o início de uma grande mobilização de pessoas e de organizações voluntárias que estiveram presentes nos territórios e nas comunidades afetadas.
A magnitude da tragédia transbordava das próprias instituições e organizações, que chegavam com boas intenções mas com pouco conhecimento e experiência neste tipo de situação. Assim, dentro destas iniciativas coordenei “uma rede de redes” de saúde e apoio psicossocial onde participaram numerosas instituições governamentais, ONGs e voluntários(as). Nossa concepção era a de despatologizar os traumas psicológicos (com os quais as chamadas “vítimas de desastres” costumam ser tratadas). A nossa proposta visava uma mudança cultural no manejo e gestão da crise; Realizamos assembleias, reuniões e grupos de apoio. Incorporamos muitos artistas nas redes de apoio.
Em alguns grupos a catarse e a contenção psicoemocional apareciam, e nos propusemos a avançar para uma organização baseada no desenvolvimento da autonomia e do empoderamento dos sujeitos diante de sua realidade adversa. Éramos empáticos e ao mesmo tempo evitamos utilizar uma linguagem vitimizadora, o que implicava uma desmedicalização do discurso e evitava assim a psicopatologização da tragédia.
Importávamos com a garantia de lugar e reconhecimento à pessoa a partir da sua potência para enfrentar o dia a dia, e não apenas com suas carências, medos e lutos. A escuta ativa ressoava com os traços que o evento traumático havia deixado em seu corpo e em sua mente e, ao mesmo tempo, esses momentos iam se transformando. Ali, a arte nos trazia múltiplas possibilidades.
Resultados
Organizamos inúmeras atividades artísticas baseadas no íntimo, em encontros aparentemente “espontâneos” para que o canto fosse justamente, por exemplo, uma forma de catarse mas também de ressignificação e ressemantização da situação traumática e de encontro com novas possibilidades em redes de apoio. Não foi fácil devido à natureza massiva do sofrimento e ao transbordamento do sofrimento subjetivo coletivo. Nossa proposta foi a de transcender a concepção psicopatológica, que medicaliza as suas respostas, tratando o sofrimento como problema de saúde.
Considerações finais
Não há trauma sem sujeito e não há medicina que processe, por exemplo, a angústia inexpressável pela sobrevivência, em que a produção de valor já não se baseia apenas na produção material mas, cada vez mais, advém do uso de faculdades relacionais, sentimentais. Por isso que hoje sinto empatia pelos nossos irmãos brasileiros afetados pela tragédia do Rio Grande do Sul.
Nosso trabalho em Vargas foi o de promover diferentes formas de produção de sentido e uma delas foram as extensas redes de apoio a grupos por meio da arte, ou seja, não só para aqueles(as) de nós que tiveram contato com as pessoas afetadas, mas também para aqueles(as) diretamente localizados no território devastado, já que cuidamos de pessoas inclusive nas mesmas zonas de perigo.
A tragédia era também um fenômeno político-cultural que merecia níveis mais elevados de consciência; aqui a arte pode ser uma estratégia de contenção e catarse, e também, um meio de fortalecer a consciência crítica para enfrentar a crise climática.
Diante da ruptura simbólica do “antes” e do “depois” que marca o evento traumático das emergências socioambientais, proponho ações comuns das Cirandas del Sur para apoiar o Rio Grande do Sul e tornar mais viva a vida vivida todos os dias, com laços sociais fraternos.