Apresentação: O conceito teórico-metodológico da interseccionalidade tem sua gênese nos movimentos feministas e negros que buscavam compreender os atravessamentos da opressão e discriminação étnico-racial na vida das minorias socialmente marginalizadas e excluídas, inter-relacionando os eixos de gênero, sexualidade, raça, etnia, classe social e geração para ampliar a visão crítica da inseparabilidade estrutural entre o racismo, capitalismo, etarismo, heteronormatividade e patriarcado que persistem na violação e sufocamento das expressões de identidades e subjetividades dos sujeitos contra-hegemônicos. Na compreensão da teórica negra feminista, Kimberlé Crenshaw, a interseccionalidade possui apontamentos cruciais para sistematização do conceito, como a indissociabilidade e interdependência da raça, gênero, sexualidade e classe social, também fundamentou criticamente o racismo, sexismo, homofobia e aporofobia como múltiplas opressões que se reforçam entre si para invisibilidade e marginalização dos corpos minoritários. A interseccionalidade em discussão no campo da saúde coletiva, é melhor evidenciada no modelo do processo saúde-doença que se baseia no enfoque dos determinantes sociais da saúde (DSS) reafirmando a existência de confluência de fatores resultantes das iniquidades sociais que interferem nas condições de vida e de trabalho, podendo ser de ordem socioeconômica, culturais, étnico-raciais, psicológicos e comportamentais levando a população vulnerável ao adoecimento. É válido enfatizar ainda o trabalho compreendido como um expoente determinante social em saúde, pois a condição, processo e ambiente laboral influenciam diretamente a saúde dos indivíduos, os expondo aos riscos ocupacionais, precarização, insalubridade, desemprego e subemprego, que, sobretudo, afeta mulheres negras, pobres, trabalhadoras informais e aquelas que são mães solo, trazendo assim em pauta a discussão da interseccionalidade que tranversaliza essa população. Portanto, a pesquisa justifica-se nas implicações da interseccionalidade para uma assistência à saúde com equidade, integralidade e resolutividade na vida dos(as) trabalhadores(as) feirantes que vivem no contexto da informalidade e que tem entraves colocados pelos modelos hegemônicos de poder historicamente construídos que, por sua vez, estão em oposição aos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS). Desse modo, o presente estudo tem por objetivo analisar as interseccionalidades em saúde dos trabalhadores feirantes de uma cidade do interior da Bahia, compreendendo as implicações dessas vulnerabilidades para a assistência de saúde com equidade no Sistema Único de Saúde (SUS). Desenvolvimento: Trata-se de um estudo epidemiológico, censitário, do tipo transversal desenvolvido com dados da baseline do projeto guarda-chuva intitulado “Acidentes de trabalho em feirantes e as condições laborais e de saúde: estudo prospectivo”, contemplando somente os dados sociodemográficos dos trabalhadores participantes, visando uma análise crítica e analítica das interseccionalidades apresentadas por essa população. O estudo foi realizado no Município de Guanambi, localizado na região sudoeste do Estado da Bahia, distante 675 km da capital Salvador. No tocante aos critérios de inclusão dessa pesquisa foi estabelecido: trabalhadores do tipo camelôs, ambulantes e feirantes, de ambos os sexos, com idade igual ou superior a 16 anos, que desenvolvam atividades laborais no Mercado Municipal de Guanambi, que não possuam registro em carteira de trabalho para tal atividade, que exerçam suas atividades em local especificado pela administração do mercado e que constituíram a coorte da pesquisa “Acidentes de trabalho em feirantes e as condições laborais e de saúde: estudo prospectivo” com aceite por meio da assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE). O estudo contemplou somente as características sociodemográficas dos trabalhadores (idade, raça/cor, situação conjugal, escolaridade, renda). Os dados foram analisados com o auxílio do programa estatístico Statistical Package for the Social Sciences (SPSS IBM), versão 22.0 (licenciado para DEDC XII, sob número de série 10101141214) e tabulados através do Microsoft Excel 2016. Quanto aos aspectos éticos e legais, a pesquisa foi submetida à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado da Bahia (CEP/UNEB), obedecendo aos preceitos éticos constantes na Resolução 466/2012 e aprovado sob número de CAAE 77090717.8.0000.0057 e protocolo nº 2.373.330, de 09 de 49 novembro de 2017. Resultados: A pesquisa contou com um quantitativo de 426 trabalhadores. Quanto as características sociodemográficas dessa população, apresentam-se sendo a maioria do sexo feminino (n= 162; 38,1%), da raça/cor negra (n= 279; 65,5%), com idade até 49 anos (n= 228, 53,5), em situação conjugal de não casadas (n= 317; 74,4%), com escolaridade até o ensino fundamental (n = 281; 66,0%) e com renda de até 1 salário mínimo (n= 219; 51,4%), ainda na variável renda houve uma recusa no fornecimento do dado por 21,1% (n= 90) dos participantes. As variáveis independentes estudadas nessa população de feirantes evidenciam a interseccionalidade e os seus desdobramentos nas relações sociopolíticas e também as barreiras de busca e acesso aos serviços de saúde. Os resultados desta pesquisa apontam que a maioria das participantes são mulheres que segundo a literatura científica enfrenta problemáticas de dupla/tripla jornada de trabalho, desvalorização salarial, condições de estresse, invisibilidade do trabalho na ótica patriarcal e ausência ou negação dos direitos trabalhistas principalmente no que se refere às trabalhadoras informais, acarretando em demandas de saúde que exigem equidade e integralidade do cuidado. Um dos dados expostos pelo estudo também é a raça/cor negra dos participantes, sendo este um marcador social de exclusão ao direito às ações de promoção, prevenção e recuperação da saúde das mulheres e homens negros, fato que resulta em maiores taxas de morbidade e mortalidade por causas evitáveis dessa população advindo de uma concepção colonial, violenta e racista contra às pessoas negras. Quanto a questão conjugal, a maioria do público estudado, encontram-se não casados (solteiros, viúvos ou divorciados) podendo ser vítimas de preconceitos e estigmas pela lógica patriarcal, machista e heteronormativa. Os dados apresentam ainda a baixa escolarização dos participantes, esse fator torna essa população vulnerabilizada pelo limitado acesso à informação, incipiente participação social na defesa dos direitos à saúde, negligência e invisibilidade desse público nos equipamentos públicos de saúde. Ao analisar a renda desses trabalhadores feirantes, é fundamental compreender a variabilidade financeira proporcionada pela informalidade e como isso contribui para a marginalização dessa população na ordem capitalista, fundamentada na exploração da força de trabalho e na mercantilização da saúde por meio do complexo industrial-médico-hospitalocêntrico. Considerações finais: Essa pesquisa reforça a importância de um cuidado em saúde que considere articuladamente os marcadores sociais como proposto pelo conceito de interseccionalidade e assim reconheça as situações de vulnerabilidades que atravessam os indivíduos, sobretudo mulheres negras, pobres, com baixa escolarização e trabalhadoras informais. O estudo fundamenta ainda que o Sistema Único de Saúde (SUS) é um espaço de garantias de direitos, proteção social e diminuição das iniquidades, devendo utilizar-se da interseccionalidade como ferramenta analítica e multidisciplinar para oportunizar o fortalecimento dos valores de equidade, justiça social, integralidade e humanização no enfrentamento dos desafios evidenciados pela pesquisa e na construção de um cuidado antirracista, decolonial e antissexista.