A partir de atividades práticas da disciplina curricular de “Psicologia Escolar e Educacional” de um curso de Psicologia, um grupo de acadêmicos se inseriu em uma escola estadual do interior do Rio Grande do Sul. Após uma aproximação e escuta da direção, professores, demais trabalhadores e alunos, foram propostas intervenções com estudantes do Ensino Fundamental II. Nestas, a atuação se sustentou nas referências técnicas para a atuação de psicólogas(os) na educação básica, seguindo todas as recomendações éticas. É importante ponderar que o contexto do território que a escola atende é atravessado por uma série de vulnerabilidades sócio-econômicas, o que perpassa significativamente os discursos institucionais. Dado tais atravessamentos, a inserção do psicólogo nesses espaços não dispõe de ferramentas possíveis para resolução prática da precarização da vida e dificuldades de acesso à direitos. No entanto, há de se levar em consideração que “um dos enganos mais paralisantes é o de acreditar que se não se muda tudo, não se muda nada”, uma vez que “entre o nada e o tudo há muitos passos que podem e devem ser dados”. Dessa forma, a presença da psicologia deve visar tornar possível a construção de vias de simbolização das vivências cotidianas dos sujeitos inseridos nesses espaços. Assim, nesse contexto, pensou-se uma intervenção pela via da circulação da palavra, arte e escuta, com o objetivo de construir sentidos sobre como se configuram os espaços e as experiências na escola, promovendo o advento do sujeito e a construção de uma experiência coletiva. Nesse sentido, o presente trabalho é um estudo qualitativo e exploratório, cujo objetivo é relatar e refletir acerca da experiência de estudantes de psicologia numa escola estadual, a partir de uma das intervenções propostas pelo grupo com uma turma de sétimo ano, entendendo a escuta e a arte como ferramentas promotoras de saúde.
Entende-se a escola como um espaço privilegiado quanto às discussões de questões relacionadas à promoção de saúde, dado o papel importante que ocupa socialmente e que faz com que diversos atores sociais a perpassem, bem como pelos determinantes sociais dos processos de saúde que acabam atravessando seu cotidiano, como a pobreza e preconceitos. Assim, o alcance de atividades de promoção de saúde nas escolas é extenso, contribuindo para a ampliação da autonomia e transformação social pelos sujeitos. Contudo, para que isso seja possível, é necessário que as ações nas escolas tenham em vista o sujeito de forma integral, levando em consideração também aquilo que traz consigo até chegar ao ambiente escolar, isto é, sua vida no ambiente familiar e comunitário. Assim, o conceito de saúde precisa também ser revisto e assumido como uma integralidade, ou seja, afastá-lo do modelo exclusivamente biomédico, clínico, e que entende saúde como ausência de sintomas ou doenças, e ampliar o entendimento de saúde para além desses limites, relacionando-a com aspectos fundamentais da vida cotidiana dos sujeitos, como o acesso ou violação de direitos.
Além da compreensão integral de saúde, é pertinente salientar a compreensão da palavra enquanto revelação do sujeito, o meio por excelência deste ser reconhecido. A intervenção, então, foi proposta como um espaço para fazer circular as palavras, uma vez que o sujeito fala onde quer que haja uma escuta, alguém disponível para escutar. Essa escuta visa estabelecer um convite a espaços de interação e renovação, dado que, a palavra, ao circular, pode transformar-se em algo novo. Assim, exerce uma função terapêutica atrelada ao acolhimento e depende da valoração de um encontro pautado na dialogicidade, uma vez que a promoção de saúde é feita de forma descentralizada, com relações construídas de forma horizontal, com foco nas demandas dos sujeitos. Nesse sentido, o trabalho por essa via abre mão do controle sobre as experiências, mas acontece no acolhimento do inesperado, na abertura para a delicadeza da escuta e das possibilidades e criações do sujeito. Em vista disso, em um contexto escolar, há de se lançar mão de estratégias criativas e lúdicas para fazer circular a palavra, como as atividades artísticas, que, na saúde mental, podem ser compreendidas como práticas de valorização e reconhecimento de potencialidades subjetivas, sendo um recurso terapêutico propício à livre imaginação, contribuindo para a promoção de cuidados e qualidade de vida.
Dessa forma, para a intervenção com uma turma de sétimo ano, levou-se até a escola recursos artísticos como cartolina, tinta, pincel, giz de cera e propôs-se a reorganização da disposição das cadeiras para formar um círculo; combinou-se a construção de um espaço de compartilhamentos pautado no respeito mútuo e no sigilo; fez-se uso de perguntas disparadoras de diálogo acerca de suas relações com o ambiente escolar, seus processos de aprendizagem e demais aspectos latentes que emergissem no grupo; escutou-se. Já nos primeiros minutos, um aluno verbalizou sua frustração sobre a escola não se propor a manter uma relação dialógica com eles, então, ao propor-se uma escuta, sem que fosse preciso fazer perguntas, os alunos se puseram a falar. Eles demonstraram desejo em compartilhar sobre suas perspectivas e sentimentos quanto às experiências escolares com o grupo de estudantes da psicologia. Falaram sobre desrespeito, bullying, dificuldades escolares, relacionamento da turma, sobre o que gostavam na escola, etc. Os adolescentes iam complementando-se e construindo um sentido coletivo para muitas vivências que, antes, pareciam individuais, ou, ao menos, não eram partilhadas pela via da palavra. Ao apresentar a eles os materiais artísticos e propor criar uma arte para expressar o que foi conversado e o que mais quisessem, pareceram animados e disseram gostar de pintar/desenhar, mas que ali (na escola) não dispunham desse tipo de material. A turma se organizou, dividiu os materiais e pintaram um cartaz com desenhos do espaço físico da escola, representações, como “ O medo”, flores, formas abstratas e dizeres como “mais respeito”, “mais amor”, etc. Ainda que tenham feito diversas trocas pela via da palavra falada, foi apenas com o pincel e a tinta que os alunos manifestaram pedidos coletivos como esses; demandaram um sentido diferente ao anterior. Materializaram ali, a escola que queriam, uma escola que fosse para eles, diferente do que é. Abriu-se, assim, um novo sentido e uma nova possibilidade. Desse modo, o processo artístico enquanto recurso terapêutico não curou sintomas nem mudou a realidade que enfrentam, mas produziu uma pausa sensível e contemplativa, possibilitando a materialização e exposição de sentimentos que envolvem suas vivências dentro da escola. Além disso, trouxe esperança, potencializando a vida. A partir de uma roda de conversa, lápis, tinta e papel, pôde-se construir algo coletivo, criativo, divertido e promover um espaço em que aspectos subjetivos da vida de cada um dos sujeitos envolvidos fosse valorizado. Além disso, ao poder expressar as suas vivências e como enxergam a realidade das escolas, o diálogo pode proporcionar uma capacidade transformadora de reflexão ou transformação do espaço social partilhado entre os alunos. Desse modo, a experiência relatada evidencia como, embora não resolva problemas estruturais da sociedade, a presença da psicologia nas escolas, em uma perspectiva ética e transformadora, é não só um espaço de promoção de saúde e construções coletivizadas, mas também um ato político, possibilitando a abertura de fissuras no modus operandi. Nessas, as vozes dos sujeitos do espaço escolar ecoam em denúncias, bem como em anúncio de suas potencialidades.