Introdução: O racismo estrutura-se na sociabilidade brasileira e seus efeitos são revelados nos índices de desigualdades sociais e raciais. Segundo dados do Relatório da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), a população negra tem menos acesso à saúde se comparada à branca¹. Além disso, as pessoas de cor preta (11,9%) e parda (11,4%) são destaque entre as que se sentiram discriminadas nos serviços do SUS.. No que diz respeito à capital gaúcha, segundo dados do IBGE (2010), 20,2% da população autodeclara-se negra, 10,2%, pretos e 10%, pardos. Um contingente de 25,44% das mães negras de crianças nascidas vivas em 2022 realizaram seis ou menos consultas de pré-natal, a média de idade de suas mães é de 20 - 29 anos com 11 anos de estudo². Dentre os óbitos por faixa etária e raça/cor, crianças negras corresponderam a 46,7% dos óbitos na faixa etária de 5 a 9 anos. Entre as gestantes vivendo com HIV, as negras representam mais de 40% de todos os casos. A taxa de detecção de sífilis adquirida na população negra (157,1) é mais que o dobro da taxa na população branca (65,5), e o percentual de gestantes com sífilis na população negra permanece alto, ocupando o segundo lugar no ranking nacional de sífilis em gestantes. Dados desagregados por raça/cor permitem demonstrar a desigualdade entre mulheres negras e mulheres brancas no sistema de saúde. Frente a esse cenário, é imprescindível racialializar a prática dos profissionais de saúde da rede pública e investir na qualificação do quesito raça/cor para formulação de políticas públicas específicas. No ano de 2012, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Porto Alegre, pelo Núcleo de Equidade, da Coordenação de Políticas Públicas em Saúde, lançava o curso intitulado “Promotores de Saúde da População Negra”, que, ao longo de mais de uma década, tem como objetivo principal fortalecer a implementação da PNSIPN na rede de saúde do município. O curso conta com reserva de vagas para: trabalhadores da saúde, controle social, estudantes, profissionais vinculados a outras secretarias municipais. Dentro dessa perspectiva, é fundamental olhar para o acesso das mulheres negras aos serviços de saúde. Os profissionais formados têm a responsabilidade de multiplicar a PNSIPN e usá-la como uma ferramenta de trabalho que alinha as práticas profissionais. Objetivo: Relatar de forma problematizadora a experiência de uma enfermeira sanitarista promotora, que trabalha sob regime de concessão para uma organização civil parceirizada, de saúde da população negra na Atenção Primária à Saúde no município de Porto Alegre. Metodologia: Relato de experiência de uma enfermeira promotora de saúde da população negra, atuando em Unidade de Saúde na zona Leste de Porto Alegre, sob regime de concessão para uma organização civil parceirizada. A US é composta por duas equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF), horário de trabalho das 08h até às 17h, que atendem a área adscrita ao território, com cobertura do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). A experiência foi iniciada em 2021, e ocorre até a presente data. No que tange aos aspectos éticos, foi respeitado o sigilo dos sujeitos e do nome da instituição na qual a experiência foi desenvolvida. Por se tratar de um relato de experiência relacionado ao cotidiano do serviço, este trabalho dispensou a submissão a um Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos. Descrição da experiência: Durante a prática profissional como enfermeira na APS, identificou-se que as mulheres negras acessam o serviço de saúde por demandas de: realização de testes rápidos de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST’s), demandas sociais e de saúde mental, início de pré-natal tardio alinhado com necessidade de encaminhamento para Pré-Natal de Alto Risco, muitas trabalhadoras domésticas que expõem “trabalhar em casa de família” e que, por isso, não conseguem acessar a unidade com frequência regular e apresentando repercussões em sua saúde física devido ao trabalho braçal. Relatando a partir do lugar de escuta dessas mulheres, o cenário do consultório torna-se um ambiente de autocuidado e promoção de saúde. Em razão disso, por vezes, esbarra no contexto social e de trabalho que elas estão inseridas e é urgente investir tempo e qualidade nessa oportunidade de escuta qualificada, acolhimento, resolutividade e enfrentamento ao racismo. Cabe pontuar que Porto Alegre é a quinta cidade brasileira com o maior índice de segregação racial, e esses reflexos estão impressos no acesso à saúde das mulheres negras ao serviço público³. O racismo opera como um determinante social de saúde, seus reflexos empurram as pessoas negras para situações de vulnerabilidade devido a processos históricos de desigualdade atravessadas por gênero, raça e classe. Um dos entraves encontrados na prática do cenário de APS, para garantir o cumprimento da PNSIPN, é o próprio racismo. Processos criados e mantidos pela branquitude para naturalizar as condições de subalternidade da população negra e manter hierarquias raciais dentro da sociedade. Cida Bento teoriza sobre pacto da branquitude que atribui privilégios geracionais às pessoas brancas e que narrativas de hierarquias de poder na qual pessoas negras estão destituídas desse poder. Importante sublinhar que o racismo não foi idealizado pelas pessoas negras, mas é uma estratégia “branca” que tinha como justificativa a exploração e o tráfico de corpos negros do continente africano para trabalho forçado no Brasil4. Esse passado precisa ser discutido, a partir do sujeito branco, sobretudo a partir do lugar dele, que é o beneficiário dessa estrutura racista, tanto em capital simbólico quanto em capital material. Todo esse acúmulo atravessa os corpos negros, o que justifica que se tenha políticas públicas para essa população. Kimberlé Crenshaw5 cunhou o conceito de Interseccionalidade, que versa sobre a interação de opressões: raça, gênero, classe, orientação sexual, entre outros marcadores sociais. Considerações finais: É fundamental entender que o processo de cuidado passa pela via da raça, uma vez que não há como destituir o sujeito de seu lugar social. Então, quando uma mulher negra acessa o sistema de saúde, sua raça/cor a apresentam e o racismo já a coloca em um lugar social historicamente pré-determinado. Torna-se urgente a racialização das práticas de saúde, de modo a buscar soluções equânimes para cessar a produção de desigualdade.