A automutilação é um fenômeno complexo e multifacetado que tem suscitado crescente interesse entre pesquisadores, profissionais de saúde e educadores. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2014), ela se refere ao dano deliberado a uma parte do corpo, realizado de forma consciente e sem intenção suicida, utilizando métodos socialmente não aceitos. Tatuagens, piercings e outras formas de modificação corporal para rituais tribais ou expressão pública não são considerados automutilação. O objetivo primário desse comportamento é frequentemente o alívio de uma dor emocional intensa, buscando temporariamente diminuir a angústia por meio da dor física.
Embora frequentemente associada à adolescência, a automutilação entre jovens adultos, especialmente aqueles com mais de 18 anos, é uma realidade digna de atenção. Essa prática, também conhecida como autolesão não suicida, envolve infligir danos ao próprio corpo sem intenção de morrer, assumindo formas como cortes, queimaduras, arranhões e perfurações. Importante ressaltar que a automutilação não indica fraqueza ou falta de controle, mas sim uma estratégia mal adaptativa de enfrentamento para lidar com emoções intensas e conflitos internos.
De acordo com Fortes e Marcedo (2017) o ataque ao próprio corpo é comumente relacionado a um sentimento de desespero e de desorientação. O corte, a violência de “si” vem assimilado a tentativa de conferir uma restauração brutal das fronteiras perdidas do corpo, como forma de diminuir o sentimento de vertigem, no sentido de impossibilidade e incapacidade de domínio sobre as intensidades experimentadas, assim como sentimento de colapso, para que se possa promover a sensação de vida. Segundo as autoras, para o paciente clínico, representa “o sangue que corre religa os fragmentos esparsos de si mesmo”.
A adolescência e o início da idade adulta representam períodos de transição e desafios emocionais, sociais e psicológicos, nos quais os jovens enfrentam a busca pela identidade, autonomia e aceitação social. Esses desafios, juntamente com questões relacionadas à autoimagem, sexualidade, pressões acadêmicas e familiares, podem aumentar a vulnerabilidade dos jovens à automutilação.
Diversos fatores de risco têm sido associados à automutilação entre jovens adultos, incluindo histórico de trauma, transtornos psiquiátricos, baixa autoestima, dificuldades na regulação emocional e falta de apoio social. Por outro lado, fatores de proteção, como apoio familiar, redes sociais de suporte, habilidades de enfrentamento saudáveis e acesso a serviços de saúde mental, podem ajudar a reduzir o risco de automutilação e promover o bem-estar emocional.
A automutilação entre jovens adultos é uma preocupação crescente no Centro de Atenção Psicossocial - CAPS Adulto Fragata, no município de Pelotas. Diante dessa demanda, surgiu o Projeto Sou+Eu, destinado a atender especialmente jovens em sofrimento, incluindo aqueles com histórico de automutilação. Este estudo busca compreender a automutilação e sua relação com o desenvolvimento dos jovens, explorando fatores de risco e proteção, além de possíveis abordagens de intervenção. A compreensão desse fenômeno é crucial para o desenvolvimento de estratégias eficazes de prevenção e tratamento.
Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são serviços de saúde mental comunitária criados para oferecer atendimento a pessoas com transtornos mentais graves e persistentes. Esses locais oferecem serviços especializados e buscam trabalhar a autonomia, os limites e as potencialidades dos indivíduos que procuram o atendimento, visando sempre à promoção de atividades no âmbito coletivo e individual, inserindo a família no cuidado e baseado no princípio da intersetorialidade.
No município de Pelotas, existem diferentes tipos de CAPS que atendem a várias necessidades da população: CAPS Adulto: Voltado para o atendimento de adultos com transtornos mentais graves e persistentes; CAPS Infantil (CAPSi): Especializado no atendimento de crianças e adolescentes até 18 anos com transtornos mentais; CAPS Álcool e Drogas (CAPS AD): Destinado ao atendimento de pessoas com problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas.
Cada tipo de CAPS desempenha um papel crucial na rede de saúde mental, proporcionando tratamentos e apoio específicos para diferentes grupos etários e tipos de transtornos. No contexto de Pelotas, o CAPS Adulto Fragata tem se destacado pelo seu trabalho com jovens com idade acima de 18 anos e principalmente um ponto de referência para o tratamento de automutilação entre jovens adultos daquela região do município de Pelotas.
Neste ínterim, o presente trabalho pretende relatar as práticas em saúde mental adotadas na psicoterapia de grupos proveniente de projeto de extensão realizado no CAPS Adulto Fragata. Trata-se, portanto, de trabalho que academicamente utilizou abordagem qualitativa e método descritivo, por meio de estudo de caso do grupo terapêutico de jovens adultos.
O Projeto Sou+Eu, assim como é intitulado, é uma iniciativa do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem (PPGEnf) da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), em parceria com a Prefeitura Municipal. Iniciado em abril de 2023, o Projeto Sou+Eu realiza encontros quinzenais no formato de grupo terapêutico, proporcionando um espaço de escuta e acolhimento para jovens adultos que enfrentam a automutilação. A equipe multidisciplinar, liderada por uma enfermeira e mediada por uma psicóloga clínica, busca compreender o sofrimento psíquico além da doença mental, promovendo o desenvolvimento da autoestima e criando estratégias para reduzir a automutilação e outros transtornos.
O grupo terapêutico utiliza jogos expressivos e arteterapia como principais metodologias, visando resgatar a subjetividade dos participantes e promover o fortalecimento dos vínculos sociais. Os encontros abordam temas identificados pelos próprios participantes, utilizando uma linguagem lúdica e recursos artísticos para facilitar a expressão e reflexão sobre suas experiências e dificuldades. A psicóloga, coordenadora do grupo, desempenha um papel ativo na escuta sensível e na promoção da autoreflexão e autoconhecimento dos jovens.
A abordagem da automutilação entre jovens requer uma compreensão holística e sensível às necessidades individuais de cada pessoa. Intervenções eficazes podem incluir:
- Acompanhamento Terapêutico Individual: Proporciona um espaço seguro e confidencial para que os jovens possam explorar seus sentimentos e desenvolver estratégias saudáveis de enfrentamento.
-Psicoterapia de Apoio: Ajuda os jovens a lidar com questões emocionais subjacentes e a desenvolver habilidades de regulação emocional.
- Atividade Física: Promove o bem-estar físico e mental, ajudando a reduzir os níveis de estresse e ansiedade.
- Educação em Habilidades de Enfrentamento: Ensina técnicas de enfrentamento saudáveis que podem ser usadas em situações de crise.
- Intervenções Familiares: Envolvem a família no processo terapêutico para fortalecer o apoio e a compreensão mútua.
É fundamental que os profissionais de saúde mental ofereçam um ambiente acolhedor e livre de julgamentos, incentivando os jovens a compartilhar suas experiências e buscar ajuda. A formação contínua de profissionais e o desenvolvimento de programas especializados são essenciais para melhorar a eficácia das intervenções.
Em resumo, a automutilação entre jovens é um fenômeno complexo que exige uma abordagem integrada e compassiva. O Projeto Sou+Eu tem sido eficaz na busca em promover a conscientização, redução do estigma e fornecer acesso a recursos adequados para ajudar os jovens a superar o sofrimento emocional e construir vidas mais saudáveis e significativas. Destaca-se a importância da família, saúde pública e educação na promoção da saúde mental dos jovens e na prevenção da automutilação, um problema que requer atenção e esforços conjuntos da sociedade.
A automutilação não deve ser vista como um comportamento isolado, mas como um sintoma de sofrimento psicológico profundo que requer compreensão, empatia e intervenção adequada. Projetos como o Sou+Eu demonstram a importância de abordagens inovadoras e colaborativas no enfrentamento deste desafio, mostrando que, com o apoio certo, é possível promover mudanças positivas na vida dos jovens adultos que sofrem com a automutilação.